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848- Neutro na beira do leito

O raciocínio clínico tão útil na beira do leito é um raciocínio lógico do tipo abdução: quando há isquemia miocárdica, o peito manifesta uma dor constrictiva; o paciente queixa-se de dor precordial constrictiva, portanto, pode estar ocorrendo isquemia miocárdica. É maneira tradicional de os médicos organizarem  e esclarecerem as complexidades clínicas e o exercício contribui para desenvolver maturidade crítica profissional. Saudosistas imortalizam a clínica soberana. Desapegados do passado distribuem os poderes dos métodos validados, caso a caso. A Bioética da beira do leito valoriza a lógica pelo objetivo do rigor nas apreciações visando a melhor conclusão dos raciocínios.

A lógica é tradicionalmente fundamentada na bivalência – verdade ou falso-, na completude – há pelo menos uma verdade entre ambas e na consistência – não mais de uma verdade. Há, contudo, uma lógica não clássica que continua admitindo os princípios da completude e da consistência, mas é trivalente- bom, mau, neutro.

Condutas na beira do leito têm potencialidades de atuação (idealmente voltada para o bem do paciente) e  efetivas realizações – benefício, malefício ou nenhum. Do ponto de vista do valor clínico, uma conduta torna-se “boa” quando beneficente e uma conduta torna-se “má” quando maleficente. A posição neutra corresponde à situação original, ponto de referência, ou seja, o efeito bom/beneficente será melhor do que estava e o efeito mau/maleficente será pior do que estava. Ademais, a posição neutra pode persistir, quer porque a conduta nada alterou – o analgésico não fez nenhum efeito-, quer porque a conduta não foi aplicada, circunstância que pode ser causada por não recomendação médica ou por impedimento pelo paciente. A não recomendação médica pode ser devida a uma falha profissional ou a um excesso de malefício desaconselhador. O impedimento pelo paciente afigura-se na não adesão pós-consentimento ou no não consentimento como expressão do direito à autonomia.

A Bioética da Beira do leito entende que a lógica trivalente alinha-se mais adequadamente com os aspectos básicos deontológicos representados por permissão, proibição e obrigação. Há a permissão ou proibição à recomendação pelo médico de valor tecnocientífico que modernamente alinha-se a diretrizes clínicas e há a permissão ou proibição à aplicação em função do consentimento ou não do paciente. A obrigação, o dever de fazer o que deve ser feito segundo as normas, fica, pois, sujeita a conflitos de normas e valores. Tantos componentes promovem um sentido de saturação ética e decorrentes conflitos na beira do leito.

Instabilidades éticas na prática podem ser ilustradas no caso seguinte: JAO é médico de NFR e lhe recomenda um procedimento argumentando que será útil para uma mudança drástica do prognóstico da evolução natural da doença. JAO atua eticamente. NFR privilegia as adversidades possíveis e recusa-se a submeter-se ao método cogitado beneficente. NFR se faz voz ativa que por sua capacidade cognitiva supera o dever da aplicação profissional. JAO, esgotadas insistências, experimenta uma ansiedade ética, receia ser avaliado como imprudente pela não realização do recomendado. Um exemplo da hipocondria moral, uma ideação sofrida e etiopatogenia de burnout,  que só cura com o desenvolvimento dos calos profissionais. JAO troca ideias com seu superior hierárquico que lhe afirma que cumpriu corretamente o seu papel no processo de tomada de decisão. Não bastou, JAO persiste atormentado pelo inação terapêutica, a diretriz clínica que bem estudou pulsa insistente na dimensão da obrigação profissional. A evidência científica precisa tornar-se clinicamente evidente. Guiado por um sentimento de frustração profissional, inconformado, num misto de sincra intenção de beneficar o paciente e preservação da sua imagem profissional, JAO consulta o Comitê de Bioética do hospital, nas entrelinhas cogita até vir a conseguir uma autorização judicial. Os demais R3 e as continuidades de R2 e R1 estão cientes por algumas conversas e pela rádio peão sempre de antenas ligadas. O efeito pedagógico do parecer ampliou-se, aliás, superpondo-se a um dos objetivos de um Comitê de Bioética.

JAO recebe a seguinte orientação: você está hierarquizando a sua visão de valor como má decisão do paciente, uma lógica bivalente – ela é boa ou é má- e interpreta a na aplicação na mesma bivalência- receia ser etiquetada como má atuação, assim como você está fazendo com o paciente. Você de fato não realizou a boa conduta (no sentido que não manejou o método) e a bivalência direciona sua mente para o complementar- a má conduta. A sua ansiedade trabalha contra você mesmo, uma auto-recriminação meio que ativada por sua inexperiência e faz com que o porto seguro ético da justificativa do não consentimento do paciente fique anestesiado na sua consciência profissional. Já a lógica trivalente facilita fazer a dissociação entre a não aplicação e o seu empenho profissional para aplicar. Ela permite considerar o conjunto da atuação como neutro (indemonstrável ou não interpretável) pela oportunidade  neutralizada- você não aplicou porque foi neutralizado, o paciente não recebeu porque neutralizou e a doença não se modificou porque a realização do potencial de benefício foi neutralizada. Concentre o seu foco crítico no real sentido da (não) atuação, evite misturar com o valor (perda de oportunidade) pelo prognóstico prejudicado. Você acabou sendo neutro, não pode ser agente nem do bom, nem do mau resultado a que os casos estão sujeitos. Em suma, não há fundamento para interpretação atual ou futura de infração ética da sua parte porque a neutralidade acabou acontecendo (trivalência) e pelo princípio da continuidade na lógica- precisa haver uma verdade e pelo  princípio da consistência- não há mais do que uma verdade, vale dizer, o conjunto da sua atuação foi apenas neutro (A da disposição/intenção para aplicar + (-)A do não consentimento= 0). Tudo se passou apenas como preparativos diagnósticos e planejamentos terapêuticos que se supõem eticamente bem desenvolvidos. Desta maneira não se pode falar em imprudência da sua parte – que é a sua preocupação- porque esta natureza de efeito neutro (leia-se não efeito por não aplicação por não consentimento) não cabe ser articulada ao domínio dos valores. Aqui bem entre nós, porque não é de bom tom o médico fazer juízo de valor sobre decisões do paciente, se é que houve alguma imprudência foi por parte do paciente, embora ele deva ter tido suas razões e se responsabiliza por elas. Deve ficar claro que uma conjugação de nãos na beira do leito neutraliza interpretações de omissão no contexto do art. 1º do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência, porque  direciona para o cumprimento do art. 22: É vedado ao médico deixar de obter consentimento do paciente sobre o procedimento a ser realizado. Por fim JAO, registre detalhadamente no prontuário do paciente, entendendo que o que está registrado previamente a alguma interpelação ética ou judicial “aconteceu” e o que não está registrado “não aconteceu eticamente falando”. Desta forma, você estará amparado espantalho - Desenho de salabaxa - Garticcontra algum tipo de falácia do espantalho  caso amanhã na emoção do agravamento da doença, o paciente ou representante distorça uma opinião de conduta que você não expressou e use capciosamente como argumento de imprudência ( “… o doutor disse que o paciente estava dando importância para as adversidades em vez de priorizar os benefícios, ele não ligou a mínima para o impacto num leigo das consequências das adversidades...”).

Considerando a lógica do terceiro incluído, um fundamento da Bioética da Beira do leito, o figurativo bastão de madeira com uma extremidade de benefícios e outra de malefícios e que faz com que não haja contradição em afirmar que o método possa ser ao mesmo tempo bom e mau, ganha a conotação de neutro pelo impedimento à realização de ambas potencialidades pelo não consentimento do paciente. Enfim, não é possível pensar ética médica independente das realidades da conexão médico-paciente. Assim, quando numa linguagem coloquial o paciente neutraliza a atuação do médico pela não adesão, ele interfere na forma de interpretação do par intenção-consequência inserido na ética da responsabilidade: respondemos não apenas por nossas intenções ou nossos princípios, mas também pelas conseqüências de nossos atos, tanto quanto possamos prevêlas. A resultante é a absolvição da imprudência. 

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. O Neutro pressupõe ausência, não atuação. Estas agridem moralmente o médico ético e atuante. Esta agressão – do dia a dia, de forma repetitiva – provoca danos – às vezes irreversíveis que podem iniciar o processo de burnout.

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