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846- Mary vinte anos em quarentena sem sintomas

O pandemônio da pandemia faz bypass por certas obviedades. A experiência me ensinou que o óbvio assim se tornou porque é veraz e tem um valor  universal. Por isso, escrever sobre o óbvio pode ser recebido como desnecessário da  comunicação porque o leitor está cansado de saber.

Mas, universal não significa que é óbvio para todo o mundo e, ademais, esquecimentos acontecem quando o óbvio não se renova na memória. Às vezes até nos confundimos e distorcemos alguma essência do óbvio. Portanto, fica obvio que uma obviedade nem sempre assim está para alguém. Ademais, óbvio tanto pode representar algo tanto excessivamente claro quanto assustador, dois sentidos do termo ululante e que nos remete ao inesquecível Nelson Falcão Rodrigues (1912-1980).

Não fica bem usar a expressão Óbvio ululante em medicina e ciências da saúde em geral. Dito entre profissionais da saúde tem enorme chance de gerar sentimentos de ofensa à capacidade cognitiva. Deve ser evitado em nome da comunicação não violenta tão bem exposta por Marshall Bertram Rosenberg (1934-2015).

Assim, com a devida cautela, a obviedade que me motiva neste momento relaciona-se à Covid-19: A doença é uma reação da espécie a um ambiente hostil. Comunga-se com o paradoxo de doença defensiva: uma reação da saúde do paciente (capacidade de inflamação) provocando as formas mais graves.

A Covid-19 permite uma consideração sobre a polêmica do conceito de doença, se bastaria alguma alteração detectável por algum exame clínico ou complementar ou se ela teria que se associar a um valor clínico. Quem testa positivo e persiste de fato assintomático (sem anormalidade estrutural ou funcional nem uma resposta fisiopatológica) é um caso de Covid-19 ou tão somente um portador do vírus?

Neste agora afastamento da obviedade, etiquetar que há uma doença presente exige um dano individual ou o fato de representar dano para terceiros pode fundamentar a etiquetagem?

Estas considerações fazem lembrar Maria Tifóide (Mary Mallon, 1869-1938) que a história registra como a mulher que foi obrigada a viver cerca de 20 anos em isolamento físico/social. Para ajudar a por alguma luz na questão acima, registre-se que no CID-10 a situação de Maria Tifóide não se enquadra em Febre Tifóide, mas em Portador de Tifóide na seção Danos potenciais à saúde relacionados a doenças contagiosas do capítulo XXI (Z22.0).Mary11

Sobre o caso George Albert Soper (1870-1948), um engenheiro sanitarista que trabalhava na saúde pública dos EUA e que descobriu o que a cozinheira Mary de fato representava, escreveu em 1915 sob o título Typhoid Mary Has Reappeared; Human Culture Tube, Herself immune, Spreads the Disease Wherever She Goes: Tratamento médico provou então ser ineficaz, pois caso se coloque na vesícula biliar um desinfetante forte a ponto de destruir os germens, ele também destruirá o paciente… A quarentena supervisionada pelo Serviço de Saúde foi a mais hábil prática existente. Qualquer semelhança…

Em suma, de modo oposto a uma apreciação que a condição de Mary Mallon Mary22seria uma não doença porque não tinha relevância clínica para ela, havia o valor epidemiológico do contágio por Salmonella typhi e sua relevância clínica. Florence Nightingale (1820-1910), a fundadora da enfermagem moderna morreu de febre tifóide em Londres na época em que Mary Mallon preocupava as autoridades sanitárias estadunidenses. A propósito, o cloranfenicol tornou-se disponíevl cerca de 10 anos após a morte de Mary Mallon.

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