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841- Talvez e bom senso na ética da beira do leito (Parte 8)

Exigências após exigências, acertos e erros, bons e maus dias, expectativas e frustrações, o médico forma seus calos profissionais e metamorfoseia-se em experiente. É instigante! O quanto de vivência precisa para ser um experiente é tema para o paradoxo de sorites. Por isso, cabe sempre novas experiências no profissional experiente e se deixar de as colecionar poderá profissionalmente gaguejar-se ex-experiente.

Tornar-se experiente é preencher um rico álbum de figurinhas com estampas da vida profissional, misto de inesquecíveis… e esquecíveis, muitas carimbadas pelas virtudes nas atitudes.

A prontidão de copy-paste para um automático de recomendação não significa, contudo, universalidade do óbvio, pois a coleção não é apoio infalível, haja vista que os tempos mudam e exigem o aval do bom senso representante dos imperativos da consciência pessoal e profissional. Uma contribuição é dizer para nós mesmos que não estamos sendo um impostor nas pretensões sobre o manejo da ética. A Bioética da beira do leito tem seu álbum com várias páginas de figurinhas de falsa aparência ética.

Um estudante de medicina, há alguns anos, apresentou-se como surfista durante uma aula no anfiteatro e ao mesmo tempo em que movimentava as mãos em ondas, me disse que via o bom senso na beira do leito como o surfe, se não houver ondas desassossegadoras, não há como se desenvolver- metáfora válida e nascimento do Dr. Surfe para a classe… e as redes sociais. Hoje, curiosamente, o Dr. Surfe faz um curso de especialização no Havaí…

Desassossegos articulam-se com incertezas que provocam talvezes inevitáveis na participação da família/estrutura familiar do paciente no processo de tomada de decisão e manifestação do consentimento para a aplicação da recomendação médica.

Consideremos o paciente como cognitivamente capaz. Em situações de emergência ou de maior gravidade, a providência profissional é notória: Precisamos da família! Que se aguarde a família! Qual a posição da família? A família diversifica e multiplica a consideração que não apenas a ciência, mas o desejo humano, é que dá legitimidade para o médico cuidar do paciente.

O profissional da saúde pretende que a família como unidade social, estrutura afetiva e mutualidade de cuidados torne-se esclarecida da medicina necessitada. É compreensão respeitosa do valor da família  que não representa apenas sangue em comum (parentesco pela consanguinidade) ou um conceito de casal. É espelho do contexto da Resolução CFM 1.493/1998: Todo paciente hospitalizado deve ter seu médico assistente responsável desde a internação até a alta hospitalar. O encontro com a família sustenta expansões e limitações à referida responsabilidade, às vezes em escalar maior do que as causadas pelos pacientes.

Pelo choque de comunidades de interpretação, tarefas voltadas aos familiares são luzes e sombras com desdobramentos. Efeitos dominó imediatos ou tardios são bem conhecidos, uma palavra inocente, um gesto despretensioso, uma afirmação compassiva podem comprometer a disposição amigável.

O modo de comunicação das complexidades habituais provoca efeitos de acordo com pessoalidades, intuições, imaginações, ilusões sobre chances, violações de códigos próprios. Apreciações de consistências e de inconsistências provocam planos de entendimentos e o que ficou em segundo plano como insuficientemente ajustado pode reverter para primeiro plano ante uma sensação de frustração.

George OrwellMédicos que atuam na beira do leito sujeitam-se à incômoda sensação de refém da família do paciente. É circunstância que faz as vezes das teletelas do 1984 de George Orwell (1903-1950) a serviço do Grande Irmão, na verdade a consciência profissional.

Ademais, a lenda dos três macacos sábios adaptada à beira do leito é útil como representação da vigilância dos familiares. O trio não deve ser entendido numa mútua colaboração onde pelo menos dois conservam a visão, a audição ou a fala.   

Não é sem motivo que seriados sobre medicina têm cenas expressivas com familiares dos pacientes. Jovens médicos têm receios que familiares possam refrear o paciente para seguir o que entendem que deve ser seguido, pois estão fora da órbita de influência. A maturidade profissional vai invertendo juízos de familiares como testemunhas de acusação e passa a sustentar a expectativa que familiares ajudam a clarear a mente do paciente obscurecida pelos impactos sentidos. É de se reconhecer, por outro lado, que se envolver com escolhas difíceis de outra pessoa embora íntimo, estar seguro de uma eventual proposta de desobediência ao médico como um passo de liberdade e lidar com o fardo da responsabilidade numa tomada de decisão alheia são exigências fortes para a maioria dos familiares, inclusive porque carecem de treinamento específico.

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