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830- Talvez e bom senso na ética da beira do leito (Parte 4)

Lembremos Fernando Pessoa.jpgFernando Pessoa (1888-1935): Tudo que existe, existe talvez, porque outra coisa existe. Nada é, tudo coexiste: talvez assim seja certo. A coexistência fica clara na beira do leito pela necessidade enfatizada pela Bioética – e que contribui para promover sua notabilidade- de pensar em não maleficência na aplicação da beneficência.

São dois mundos xifópagos que fazem enorme diferença sobre o próximo passo. Uma convivência instável do benéfico com o maléfico sobre um fio condutor cheio de dobras resulta na beira do leito como um laboratório de talvezes. Balões de ensaio recorrentes com fortíssima cadência pedagógica sempre lembrando ao médico sua solidão diante do exército de genes – e gênios- do paciente.

Após quase 100 anos do código pioneiro para o comportamento do médico brasileiro na beira do leito, as incertezas multiplicam-se adquirindo novas causas a reboque do progresso tecnocientífico. Certezas niilistas foram substituídas por inovações que trouxeram incertezas sobre resultados, portanto, acréscimo de talvezes. Métodos como pêndulos, ora desfazendo, ora provocando sofrimentos, idealmente numa proporção aceitável. Grandes passos pela esperança dos benefícios que, entretanto, desafiam a heterogeneidade da condição humana e se acompanham, invariavelmente, do risco de conflitos em função da condição humana. A beira do leito está cheia de bons meios com talvezes sobre bons fins. Qualquer sentido de indignação com as incertezas da medicina ameniza-se por lembrar que estamos, apesar de tudo, muito avançado em nossas competências em relação ao ilustrado no quadro

The Doctor exhibited 1891 Sir Luke Fildes 1843-1927 Presented by Sir Henry Tate 1894 http://www.tate.org.uk/art/work/N01522
The Doctor exhibited 1891 Sir Luke Fildes 1843-1927 Presented by Sir Henry Tate 1894 http://www.tate.org.uk/art/work/N01522
Na segunda metade do século XX, firmou-se como corolário do progresso tecnocientífico na saúde que uma parte contrária coexiste com a beneficência. Na verdade, uma atualização do primum non nocere hipocrático que não mais visa dano zero, mas a mais possível segurança biológica para o paciente. A maleficência contemporânea admite a metáfora do bastão de madeira com uma extremidade benéfica e outra maléfica; ao se cortar esta pretendendo eliminar o efeito adverso, outra extremidade naturalmente se forma e, se houver uma fúria de supressão por cortes sucessivos, a extremidade da beneficência desaparecerá. Em suma, iatrogenia zero é sempre ilusória, mas é como recorde esportivo, vale muito um milésimo de segundo, mas será que um dia será possível chegar a zero?
O indesejado prejudicial por ser nomeado como adversidade embute a possibilidade da prioridade de consideração no momento de uma decisão (vide o efeito bula onde o paciente preocupado com o que leu sobre reações adversas retorna à farmácia e troca o medicamento prescrito pelo médico visando a um benefício por uma caixa de sabonete). O paciente é uma totalidade de órgãos doentes e órgãos saudáveis e quando está para incorporar medicina pode entender que não aumentar seus problemas de saúde é melhor para sua qualidade de vida. Ele é motivado pelas dúvidas que instabilizam, trazem insegurança e fazem com que o medo da adversidade supere a esperança do benefício.
Um paciente resumiu num retorno de consulta: – “… Doutor, saí da sua consulta convicto da razão para tomar o remédio, mas no caminho para casa fiquei imaginando como seria sentir o que o senhor me disse que poderia acontecer de mal, principalmente, um sangramento, e aí, doutor, a minha intuição me disse: João, não será um remédio, será um veneno... Por isso, não tomei…”.
O João expandiu o conceito de Paracelso (1493-1541): a diferença entre remédio e veneno é tão somente a dose. Decodifiquei que a exposição de adversidades é tóxica para a mente do paciente… mas é indispensável. Lembro-me bem do impacto da fala de um amigo-paciente, desde então ex-amigo (talvez inimigo), muito bravo comigo porque estava apresentando impotência sexual e ao consultar um urologista soube que a causa do seu sofrimento era o uso do propranolol que eu lhe receitara e não lhe prevenira da possível adversidade e que não aceitou que o meu intuito foi não sugestionar.
Ainda bem que não acontece algo parecido em outras atividades: aqui está a salada que o senhor pediu, esclareço que há 0,01% de chance de conter algum parasita intestinal ou até mesmo salmonela; senhora, este shampoo é ótimo para caspa, mas há notícias de alguns casos de queda acentuada do cabelo; trocamos algumas peças do sistema de freio do seu carro, a garantia é de três meses…

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