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818- Uma letra, duas barras, cinco atributos da beira do leito (Parte 2)

Letra tê                                                            Transgressão

A história da ética em medicina ensina que certos avanços sobre as fronteiras então demarcadas, atos de transgressão, escapes de capturas impeditivas ao progresso, marcam realizações de adequação a novos tempos. Como dito pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), verdades cumprem três etapas: elas são inicialmente ridicularizadas, a seguir, violentamente contrapostas e finalmente aceitas como autoevidentes.

Progressos tecnocientíficos e metamorfoses sociais requerem adequações de classificações de comportamentos profissionais. Novos conceitos e recursos inéditos costumam colocar a ciência na frente da ética, dela exigindo apressar-se no juízo face aos ares de transgressão sempre presentes e razão de grande parte do acervo da medicina admitir a etiqueta de provisório.

Clareza na percepção dos componentes de uma nova proposição e sensatez na apreciação crítica dos limites a serem ultrapassados dão sustentação moral aos movimentos transgressores de inclusão e de exclusão e que necessitam integrar conveniência da novidade com preservação da ética médica.

Se mentalizarmos o cenário médico-social de 90 anos atrás, enxergaríamos adequado o artigo 75º do Código de moral médica (1929): Ao médico é terminantemente proibido aconselhar sistemas ou processos destinados a impedir a fecundação da mulher. Poderá fazê-lo se teme que a gestação possa ocasionar transtornos graves na saúde da mulher ou determinar a agravação de enfermidades pré-existentes; mas, nestes casos o médico assistente deverá provocar uma conferência com outros colegas, com o fim de precisar a indicação e a urgência de semelhante procedimento. Voltando à atualidade, ficamos aliviados com o Art. 42 do Código de Ética Médica (2018): É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre método contraceptivo, devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação, segurança, reversibilidade e risco de cada método.

Proibir proibir é bandeira da transgressão em sua semântica de revisar valores como ato criativo, praticar reordenamentos isentos do sentido de perversão que o termo transgressão pode suscitar.

A pandemia do novo coronavírus ilustra como uma força de rigidez para incluir/excluir entendida no caput É vedado ao médico dos artigos de Código de Ética Médica vigente pode vir a ser incompatível com subitaneidades de exigências de comportamentos profissionais. O distanciamento físico médico-paciente que ocorreu da noite para o dia em meio ao pânico de contágio motivou imediatas decisões passíveis de juízos de transgressão profissional, mas justificadas como permissíveis (não proibitivo) para a preservação da saúde – em vários sentidos- da conexão médico-paciente.

                                                                                Tenacidade
Em ciência dos materiais, tenacidade refere-se à capacidade de captar energia e deformar sem quebrar e no dicionário admite, também, o significado de perseverança, apego. Por isso, tenacidade cabe na beira do leito no contexto das reações do médico a um Não consentimento do paciente à recomendação proposta, especialmente quando a negativa influencia fortemente o mau prognóstico.
Desta forma, a  figura da deformação sem quebrar serve para visualizar a chance de um cunho provisório no Não do paciente que estimula reflexões sobre as vantagens do paternalismo brando, que, enfatizamos, não anula o direito do paciente à autonomia.
A Bioética da Beira do leito entende que tenacidade como expressão de deformar (a expectativa) mas não quebrar (a perspectiva) espelha uma disposição do médico de compreender o caráter humano na vocalização do Não frustrante pelo paciente e, por isso, dispor-se a um trabalho de captar eventuais vieses incidentes e persistir indagando, ouvindo e re-explicando sem intenção de coerção ou de proibição.
A pandemia do novo coronavírus e suas excepcionalidades alinhou tenacidade com o tipo forte do paternalismo. Uma mistura de poder, severidade, liberdade, obediência, juízo moral, conflito, contestação, cooperação, “causa nobre” e desvalorização do outro evidencia possibilidades de resultantes que alertam que nunca estamos libertos de vivenciar uma situação onde o oposto de uma verdade profunda pode ser outra verdade profunda como ensinado pelo físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) inspirado nas surpresas observadas em seus estudos sobre física quântica.
                                                                                            Transparência
Se informação é poder e o paciente é quem autoriza – ou não- a aplicação do método beneficente, não deve haver muros provocando opacidades no caminho de duas mãos dos esclarecimentos entre médico e paciente.
A legitimidade de um (não) consentimento pelo paciente passa pela adição da transparência ativa – iniciativa do médico – e da transparência passiva – por solicitação do paciente- para preencher lacunas de compreensão clínica e pessoal.
Aspecto essencial é a integração entre emissão da informação/esclarecimento e recepção como compreensão, haja vista os desníveis de conhecimento/internalização entre o profissional e o leigo. A Bioética da Beira do leito desestimula, a priori, a evitação de aprofundamento das explicações pelo médico pelo seu entendimento que será desnecessário e até contraproducente.  Se por um lado, a abstenção é desaconselhada, por outro lado, impõe-se um quantum satis a ser calibrado por um padrão de medida geral indicada pela experiência de fato acumulada e por uma medição desprendida no decorrer do caso em questão.
Assim como a folclórica letra de médico ilegível desapareceu com a prescrição eletrônica, a transparência na tradução da medicina para o leigo, especialmente num momento onde acumulam-se tipos de vulnerabilidade, precisa ser com todas as letras indispensáveis e diligentemente dispostas.
A Bioética da Beira do leito insiste na orientação que médicos necessitam dispor-se a treinar como lidar com desdobramentos da transparência de informação e um dos argumentos fortes é a falta de hábito do leigo em pensar segundo fundamentos das ciências da saúde.
Na pandemia pelo novo coronavírus, observam-se reações emocionadas à transparência de possibilidades preventivo-terapêuticas que diríamos transbordadas sem (ainda) moldes formatadores e que desafiam o valor da prudência quanto à relação benefício-malefício.
                                                                                Tolerância
O termo tolerância na conexão médico-paciente contemporânea refere-se, habitualmente, ao comportamento do médico frente a uma contraposição de opinião do paciente. Articula-se aos quatro paradoxos herdados da escola megárica:
a) sorites: um monte de recomendações médicas influentes sobre o prognóstico pode ser considerado apenas uns poucos grãozinhos pelo paciente;
b) escondido: um (não) efeito terapêutico ou preventivo já experimentado pelo paciente em outra ocasião figura-se ao mesmo tempo oculto – pela ainda não realização e conhecido – na memória; desta forma conjuga-se com a simultaneidade de dois níveis de realidade adotada como um dos fundamentos da Bioética da Beira do leito;
c) não perda: o não consentimento pelo paciente à recomendação médica não é uma perda de oportunidade de benefício porque esta só existiria, e fato, a partir do consentimento a respeito da perspectiva de beneficência;
d) mentiroso: o paciente quando responde ao médico que lhe indaga sobre um sintoma pela segunda vez doutor já lhe disse que não sinto fala a verdademuito embora repita a mentira.
As lições: a tolerância na beira do leito é necessária, sobretudo, porque nenhuma determinação da medicina precisa ser classificada com igual intensidade pelos pacientes (sorites), porque a palavra do paciente, mesmo se expressão de mentiras, é a fonte de referência para um raciocínio clínico em si verdadeiro (mentiroso), porque o mais projetável efeito só é um realizado quando há o efeito (escondido) e porque é complexo perder algo que não nunca possuiu (não perda).

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COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. Uma pergunta: temosgraus de paternalismo. Teremos graus de transgressão? A transgressão de hoje, poderá ser o mal feito do amanhã?

    1. Olá Aurelio, obrigado pelas indagações sempre inteligentes. Creio que paternalismo é qualitativo, ou se manifesta ou não. Entendo que transgressões possam ser classificáveis em graus passíveis de admitirem divergências de opinião. A ética varia de acordo com as profissões – o médico preserva o sigilo e o jornalista publica furos de reportagem-, o juízo segundo a ética é dinâmico e sensível a circunstâncias, me parece que a transgressão de hoje, justificável, para ser um mal amanhã precisa cruzar a fronteira do bom uso e ingressar no mau uso/abuso. A teleconsulta do presente momento, forçada de modo emergencial, pode até admitir certas flexibilidades pela novidade e com imperícias operacionais por falta de treinamento, mas na volta à normalidade, poderá ser um abuso quando deveria e poderia ter havido a consulta presencial ou quando for praticada fora das boas normas. Passou-se de um extremo a outro e haverá uma acomodação intermediária.

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