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810- De repente uma gangorra

De repente, um avesso que lembra que temos um corpo altamente vulnerável. Conscientizamo-nos que esta vulnerabilidade precisa nos ensinar mais coisas com urgência por dados e fatos que vem sofrendo. Um processo está em andamento, iniciado como se sabe, um enigma como se desenvolverá e finalizará.

Urge a prevenção e a terapêutica para uma virose, etiopatogenia que sempre representou pequeno espaço no acervo da medicina. Destacam-se um quadro clínico com extrema variabilidade e grupos de maior risco de má evolução clínica. Juntam-se ansiedade de poder vir a contrair a Covid-19 e o sentimento de culpa de vir a ser vetor para alguém próximo. Acelera-se o pensamento nômade, dispersar-se o borboletar de ideias (expressão de Jean-Paul Sartre, 1905-1980).

Na Covid-19 há uma pneumonia cujos passos  fisiopatológicos estão ainda em estudo, há o foco na carga viral pelo contágio entre as pessoas,  há o foco em medidas sintomáticas e de suporte à vida e há o essencial foco alopático. Misturam-se vivências tecnocientíficas aproveitáveis, planejamentos de bom senso e corrida para novas compreensões dos efeitos da virose e para disponibilidade de recursos diagnósticos, terapêuticos e preventivos, além de improvisações e inconstâncias. Faz recordar o dito por John F Kennedy (1917-1963): “… French Marshall Lyautey (Louis Hubert Gonzalve, 1854-1934) once asked his gardener to plant a tree. The gardener objected that the tree was slow growing and would not reach maturity for 100 years. The Marshall replied, in that case, there is no time to lose; plant it this afternoon!…”.

A sociedade atormentada pela ameaça sanitária e apressada com o futuro logo passou a repercutir uma inter relação evidência científica, desejo de aplicação e falta de certezas. Médicos se mobilizam, enfrentam controvérsias, procuram explicar ao leigo que a arte de aplicar ciência convive com indeterminações e requer deixar uma porta aberta para ajustes quanto a equívocos, desconhecimentos e imprevisibilidades.

Gangorra Desenho Para Colorir - Ultra Coloring PagesDe repente, mentaliza-se uma gangorra tendo de um lado o desejo de não desperdiçar uma chance de benefício que não tem tempo a perder e de outro lado a incerteza do benefício acrescido ao temor de malefícios. Estabelece-se um cotidiano com um vaivém agitado de postagens que exige o olhar crítico aguçado que sustenta a medicina baseada em evidências – integração da experiência clínica com a crítica da informação científica e da força de evidências em prol da excelência assistencial e sensível a interrogações do cotidiano -, vale dizer, a imensa maioria da população tecnicamente despreparada para opinar e parecendo espectador de partida de tênis, cabeça ora para um lado, ora para outro- ia escrever ora para a direita ora a esquerda mas desisti por razões óbvias.

Gangorra da esperança ativa, os lados trocam de altura sucessivamente, cada lado pretendendo ter suficiente peso para literalmente ter o pé no chão. O fármaco hidroxicloroquina até então pertencente ao baixo escalão prescritivo ganha projeção sobre uma nova indicação. Uma pioneira chance de redentora contribuição preventiva/terapêutica que traz a expectativa social do Enfim um remédio pronto! Algo idealizado convertido em realidade! enquanto se aguarda uma vacina resolutiva ainda em perspectiva.

Uma eventual indicação (utilidade e eficácia) da hidroxicloroquina neste pandemônio da pandemia parece – um verbo que suscita cautela no meio médico- estar menos para antônima de contraindicação (em função de danos) e mais para antônima de não indicação (inutilidade e ineficácia), o que reforça e estimula certos movimentos de contraposição ao rigor com evidências científicas sistematizadas. É verdade que inexiste iatrogenia zero em métodos em medicina, contudo, havendo incertezas de comprovado benefício na virose, no coletivo, os 26 séculos de primum non nocere  ressoam forte as adversidades conhecidas na individualidade.

De repente, a ebulição trazida pelos holofotes da popularização acerca do tipo de tomada de decisão na Saúde que é habitualmente sustentada por destaques nada emocionais faz revigorar a velha clínica soberana, o olhar clínico, o magister dixit, a que a história da medicina credita grandes sacadas, mas também grandes equívocos. Fortalece-se pelo pipocar de informações sobre casos, a velha autonomia do médico à margem da orientação da bússola-diretriz clínica e que entende que evidência científica atrelada a sistematizações de pesquisa não é um imperativo categórico que possa comandar a objeção de consciência profissional, especialmente quando a diretriz clínica específica inexiste por falta de evidência científica já pronta segundo a excelência científica, até pelo ineditismo da questão.

Apreciações de utilidade e eficácia de fármacos segundo o rigor tecnocientífico é o ideal e até mesmo inegociável sob ponto de vista construído ultimamente com extrema consciência profissional, inclusive porque a chamada fase de mercado sequente é implacável com indefinições. Mas – sempre há um mas- coleção de casos analisada judiciosamente por profissionais experientes, prudentes e zelosos, porque não podem subsidiar opinião de especialista como constante em diretrizes clínicas e que em muitas recomendações constitui a fundamentação para a aplicação? Qualquer resposta esbarra com o terrível juiz chamado tempo de experiência específica. Por isso mesmo, a brevidade necessitada impõe ao tempo quantitativo o tempo qualitativo.

Há muitas roturas acontecendo, tudo parece tão diferente agora que embaça a visão de eticamente adequado e inadequado pelo mais racional profissional da saúde e, em meio ao coletivo de um instinto de sobrevivência, alimentam-se dúvidas pela condição humana sobre o fundamentalismo científico, exigindo muito esforço para não ser abandonado. Talvez, contudo, possa ser calibrado. Várias pesquisas clínicas foram concluídas antes do tempo previsto para atingir os objetivos por evidente caracterização dos resultados, tanto de adversidades intoleráveis quanto de impossibilidade de prosseguimento ético de um braço placebo.

Somente tendências nunca entusiasmaram os pesquisadores, mas a persistência/introdução de protocolos assistenciais com uso de hidroxicloroquina em hospitais por enquanto como janelas de oportunidades, talvez possa representar algum indício. Do que exatamente? De que os dados das pesquisas possam estar caminhando para uma indicação ética? Ou, então, que não há ainda evidências sólidas para um rótulo de não indicação?

Que logo possamos enxergar o avesso do avesso!

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