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809- Escolhas

Interrogação.pptxDe alguma forma, conhecimentos a respeito do novo coronavírus admitem a metáfora do iceberg e a ideia que o socorro pode carecer dos recursos indispensáveis nos faz lembrar do Titanic onde o número de botes salva vidas era aquém do necessário. A Terra colidiu com um micróbio e expôs fragilidades na Saúde não necessariamente desconhecidas mas que estavam subjugadas por forças  mais influentes sobre a condição humana.

Vivenciamos no Brasil o temor da necessidade de fazer escolhas entre pacientes para internações em UTI. A causa da preocupação é a previsão de desproporção entre demanda de casos graves necessitados de suporte à vida e capacidade do sistema de saúde para prover a beneficência.

Compara-se a uma escolha de Sofia. Entendo que muito embora possa ser tolerado como um rótulo, o termo não se aplica. A história da polonesa Sofia refere-se a uma escolha entre dois seres humanos seus filhos, em iguais condições, imprensada por uma maldade, um sadismo extremo. Um inverso cruel da história sobre a sabedoria do rei Salomão.

Na eventualidade clínica da pandemia, trata-se de seres humanos merecedores da máxima dignidade, é verdade, todavia, diferentes em aspectos nosológicos, além de não caber juízos de maldade para a análise crítica da moralidade.

A questão decisória in extremis mescla sob o guarda-chuva do prognóstico – este aspecto da medicina de enorme relevância social- temas de interesse da bioética como futilidade de métodos, obstinação terapêutica, ortotanásia, distanásia,  mistanásia, imperativo de consciência e alocação de recursos.

Em tempos habituais, as discrepâncias entre necessidades de atenção à saúde de um paciente e  oportunidades possibilitadas pelo sistema de saúde sempre geraram a figura da fila. Pouco espaço, que se alargue o tempo. No InCor, de modo associado ao SUS, vivenciei com abrangência e profundidade inúmeros aspectos envolvidos numa fila cirúrgica. Reuniam-se complexidade de gestão, níveis de flexibilidade e integração transdisciplinar. A preservação da excelência no ecossistema da beira do leito em constante feedback com a alocação de recursos humanos e materiais.

Na situação da pandemia atual e seus critérios para hospitalização em UTI, não cabe o racional da fila. A emergência é predominante e a beneficência imposta não tolera esperas. O tempo qualitativo predomina.

A literatura aplicável com indicações de critérios de seleção de casos para UTI baseados em escore objetivo pela soma de aspectos entendidos como negativos para a qualidade da vida e a sobrevida caracteriza heteronomia em consonância com a disponibilidade de recursos. O paciente fornece dados mas não tem voz ativa. A orientação fundamenta-se na aplicação de um escore de prioridade considerando tanto a probabilidade de sobrevivência após a eventual alta hospitalar, quanto a probabilidade de sobrevida a longo prazo em relação a comorbidades. Uma linha de corte aterroriza. Uma sensação de mistanásia assombra. Pensamentos, sentimentos e movimentos interagem.

No horror da escolha de Sofia com alternativa insuportável, ter que decidir num  extremo de desumanidade elevava ao infinito a angústia desesperadora. O escore para pacientes, seria, então, uma maneira de tentar aliviar o médico do peso de uma decisão autonômica. De certa forma, não seria uma decisão daquele eu com um nome e com seu livre-arbítrio fazendo comparações e classificando destinos, mas do eu eminentemente profissional preso a uma burocratização sobre viver/morrer de acordo com uma realidade excepcional.

Nenhum médico teve formação na faculdade ou na residência médica para tal missão. Mesmo os intensivistas que colecionam experiências deste teor, embora análogas, inserem-se em outra dimensão social e detalhamentos sobre impactos de distanásia/mistanásia sob holofotes tensos.

A contraposição entre visão coletiva onde aparenta ser mais fácil entender critérios de seleção sobre a vida e visão individual altamente sensível ao porque eu  fico fora? é inevitável. Energiza o pêndulo entre  decisão heroica e humanismo.

Um Comitê de Bioética é foro adequado para cooperar nestas discussões, especialmente por se saber que eventuais premissas equivocadas não costumam permitir conclusões adequadas. Todavia, fica clara a necessidade de aprimorar a agilidade, a capilaridade e a continuidade das intervenções de um Comitê de Bioética em prol da eficiência/credibilidade, atento que a ciência como eterna busca da verdade não pode dispensar as exigências da atuação prática segundo uma necessidade bem definida.

A circunstância atual requer novos empenhos no desenvolvimento da capacidade adaptativa do médico e profissionais da saúde em geral, pessoal e profissional, desde a formatura até a aposentadoria.

Lidar com critérios de seleção de vagas em UTI  em função de uma doença que acomete simultaneamente grande número da população, muito embora passível de justificativas para rearranjos  no entorno da responsabilidade profissional, traz altíssima carga emocional – etiopatogenia de burnout- e entristece a todos os médicos que têm como ponto de referência ético o Princípio fundamental II- O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

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