Habitualmente, toda a população será nomeada paciente de alguma forma mesmo não doente, por exemplo quando vai fazer um checkup ou num trabalho de parto normal. Na situação da pandemia, esta potencialidade agiganta-se e universaliza-se. Uma variante do efeito Orloff eu poderia estar infectado amanhã.
Oportunidade para alguma reflexão sobre o Art. 34 do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.
A interpretação é que a verdade não é um imperativo ético mas é preciso uma justificativa para a objeção. Na beira do leito, não se trata exatamente de substituir a verdade por uma mentira, mas prover ajustes de omissão ou de meia-verdade para minimizar o choque emocional pessoal desaconselhado. Aspecto relevante é que eventual justificativa não deve admitir a não comunicação do que possa de fato contribuir para algum tipo de benefício- quer a necessidade de o paciente consentir e colaborar com recomendações (por exemplo, o diagnóstico é de gravidade e por isso é danoso, mas há chances terapêuticas), quer de natureza pessoal, social ou econômica para o paciente (por exemplo, na terminalidade da vida, para arrumar pendências).
Na pandemia, a comunicação direta de diagnóstico, prognóstico, riscos e objetivos como expresso no referido artigo do Código de Ética Médica precisa ser feita para toda a população e, obviamente, haverá danos de várias naturezas em graus distintos e até progressivos haja vista a necessidade de ajustes frequentes nas revelações de dados, fatos e providências. A manifestação da verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade, visando ao coletivo de uma nação, é imperativo ético. E mais, não ocorre entre quatro paredes de um ambiente hospitalar, é veiculada pelos órgãos de comunicação com infinita frequência.
O paciente -todos nós- no caso da pandemia é parte da terapêutica, talvez melhor dito da prevenção. A informação é beneficente e o dano para o paciente seria pela não revelação, ou seja, é impossível respeitar a não maleficência. Desta maneira, o direito à autonomia fica irremediavelmente subjugado pela heteronomia exercida pelas autoridades com responsabilidade sobre a morbidade, letalidade e sobrecarga ao sistema de saúde altamente concentrada em único tipo de assistência, a respiratória em cuidados intensivos.
Evidentemente, as circunstâncias são bem distintas de um caso isolado na beira do leito, mas a pandemia serve para lembrar que o justíssimo direito à autonomia do paciente veio da pesquisa pelo abuso na captação de voluntários e que de todos os circunstantes do paciente que eventualmente exercem alguma influência no consentimento, o médico é o mais preparado para o aconselhamento. Na pandemia a heteronomia está sendo exercida de modo análogo ao em emergências na beira do leito, com a diferença que o iminente risco de morte está sendo ajustado para evidente risco de morte. O exercício do paternalismo brando carrega também este objetivo.