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805- O p da questão

Alguém nada crédulo já disse e foi registrado para a posteridade de modo anônimo que não se deve aceitar a metade daquilo que muitos dizem. Concordamos que tem sua cota de validade em cenários da medicina. Mas, na beira do leito, qual das metades? A que não tem tratamento estatístico e é fruto do assim fazemos e sempre funcionou ou a que tem e assim coopera para reduzir a influência de dogmatismos e caprichos adquiridos na prática do dia-a-dia?

Podemos considerar que estatística é qual bioética, análises judiciosas sobre probabilidades do que seria certo ou errado tornar-se-iam dispensáveis perante o que satisfez. Já no descontentamento, quando a exceção prevista em 1% acontece, provoca temores e se torna 100% para o caso, os otimistas 99% supostos não necessariamente consolam o paciente/familiar.

O poder da estatística médica traz deveres que não toleram nem amadorismos nem certas simplificações. Seus princípios precisam fazer parte do protocolo da investigação científica  e aplicados segundo perfeito reconhecimento dos objetivos.

Neste aspecto, espera-se que o planejamento, execução e recomendação dos estudos formadores de opinião considere corretamente entre outros, perfil da casuística, adequação dos métodos, padrão para comparação, evitação de vieses e durante a execução da pesquisa, grau de aceitabilidade dos resultados de acordo com o já conhecido e relevância clínica.

A estatística, como forma de expressão para a descrição e análise de fenômenos biológicos é útil em muitos processos de decisão sobre diagnóstico, terapêutica e prognóstico, extrapolou os limites da pesquisa e se tornou um instrumento da prática clínica. Neste sentido, a transposição da precisão e acurácia dos achados para  efetividade da tomada de decisão é uma das questões que mais instiga o senso clínico- o quanto a verdade do laboratório de pesquisa é verdade à beira do leito. Quando um fármaco 80% eficaz é superior a outro apenas 50%, um determinado paciente pode estar entre os 20%de ineficiência do primeiro e, assim, com mais chance de se dar melhor com o menos recomendado, estímulo para a medicina personalizada. 

Cumpre ao médico ético enxergar – se possível com lente de aumento- o significado da significância, pois o que pode ser cego- ou duplo cego- é o método de estudo, nunca, metaforicamente, quem irá aplicar os resultados.

A significância estatística compreende uma escala de expectativas. Num extremo fica a informação que parece ser de fato impossível  de não ser a verdade, evidência forte, acaso distante, que a estatística seria mera formalidade. No outro, fica a situação onde a proximidade dos resultados numéricos ou a necessidade de análise complexa faz com que o raciocínio clínico aceite a probabilidade sub judice. 

Considerando que a ciência subentende permanente refutabilidade, novas verdades do extremo não óbvio têm mais chances de sofrerem abandono. Parafraseando Mario Quintana (1906-1994), diríamos que muitas delas são significâncias estatísticas que se esquecem de acontecer. Quantas condutas não passaram de manchetes, fugazes e sensacionalistas, pretensas soluções quando se presumia o inverso, especialmente pela aplicação do bom senso?

A contemporaneidade exige máximos cuidados nas indas e vindas do progresso de pessoas que são ao mesmo tempo cientistas- porque descobrem- e artistas- porque criam. A cultura médica é misto de descobertas e criatividade e a dualidade ciência e arte não pode ser evitada à beira do leito.

O teste do tempo é fundamental para mostrar o quanto de realidade há de fato na probabilidade estatística, ele é o grande moderador, que o digam os digitálicos  que permanecem úteis desde o século XVIII e as sanguessugas, ditas farmácias vivas com algumas utilidades atuais!

O efeito discriminador do tempo validou a base da Medicina clássica, construída em boa parte com intuição estatística, mas sem a rotina dos números a que nos obrigamos atualmente. A partir de 1861, o duplo sopro identificado pelo francês Paul Louis Duroziez (1826-1897) tem auxiliado como sinal de insuficiência aórtica; exatos 120 anos depois, ele foi certificado com uma sensibilidade de 90% e especificidade de 100%.

A medicina baseada em evidências procura abreviar este período de tempo, porém jamais tornará dispensável o juízo crítico tempo-dependente da experiência pessoal. Cronos que é pai de Quíron – o centauro com habilidade em medicina, origem de cirúrgico- funciona como salvaguarda para o respeito à aplicação segundo a equivalência da situação estudada, assim evitando generalizações que desrespeitariam a inevitável existência de subgrupos.

Quem tem a responsabilidade técnica e ética da aplicação a um paciente das conclusões de um estudo isolado ou da opinião da literatura, precisa certificar-se se o mesmo se assemelha aos estudados para supor mesmos benefícios. Nem sempre as informações acham-se disponíveis, o que requer cautela, busca dos originais e senso crítico. Haja tempo! Haja competência! A medicina baseada em evidências é para ser usada por quem tem vivência na situação clínica e portanto apto a uma plasticidade de conduta e não para dar uma dica do que fazer ao inexperiente – significância e significado, eis o p da questão!

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