PUBLICAÇÕES DESDE 2014

784- Crise e oportunidade

O Covid-19 viralizou literalmente. Desejos e medos contrapõem-se ainda mais. Faz lembrar do bonde quando propaganda era chamado de reclame:

 Veja, ilustre passageiro,
o belo tipo faceiro
que o senhor tem ao seu lado.
No entanto, acredite
Quase morreu de bronquite
Salvou-o o rum Creosotado.

Pois é, nesta fase inicial de impacto, quem possa estar ao nosso lado- a 1 ou 2 metros- passou a ser um vetor em potencial, será que posso folhear o seu passaporte? As coisas vão melhorar como sempre aconteceu em epidemias, mas ainda com prazo indefinido. Sugestões de providências não faltam, em 100 anos não mudaram muito em relação à gripe espanhola

Conselhos-ao-povo

A mexida é global e, paradoxalmente, reduz a globalização. Menos circulação de pessoas e mercadorais. Refreia-se a vontade de ir ao PS do hospital, sabe lá quem estará na sala de espera ao meu lado. E o doutor?  De repente, a infecção hospitalar ganhou nova visão.

O nariz passou a existir literalmente na cabeça de todos. A porta de entrada e de saída da virose, como se diz, está metendo o nariz em tudo. Inclusive na ética médica.

Como se sabe, a ética em seu significado de postura transforma-se e uma crise é forte fator etiopatogênico. O risco de um mal impacta no comportamento da mente. É quase que automático, especialmente quando o instinto de sobrevivência fica em alerta e mais, de modo coletivo. O Covid-19 está superpondo o individual (a moral de cada um) com a ética da sociedade em todos os idiomas e dialetos e, por tabela, pode afetar a ética médica brasileira. Algo como o que era tido como normal ou anormal agora, quem sabe não deva ser diferente, até o seu inverso.

O Brasil possui código de ética médica há cerca de 100 anos e as nove edições desde então servem de referência para o estudo das transformações. Por exemplo, Artigo 12º- O médico não deverá examinar a mulher casada sem a presença de seu marido ou de uma pessoa da família devidamente autorizada (1929) ou Artigo 3º- É dever do médico tolerar os caprichos e as fraquezas do doente que não se oponham às exigências do tratamento (1945) ou Artigo 37º- É admissível a quebra de segredo profissional para evitar o casamento de portador de defeito físico irremediável ou moléstia grave e transmissível por contagio ou herança capaz de por em risco a saúde do futuro cônjuge ou de sua descendência, casos suscetíveis de motivar anulação de casamento, em que o médico esgotará, primeiro todos os meios idôneos para evitar a quebra de sigilo (1965) ou É vedado ao médico instalar-se em casa do enfermo, quando não haja probabilidade de sobrevirem complicações graves (1945).

Estes artigos evidenciam como a ética médica expressa ações morais de sua época que são admitidas de modo coletivo. Um estímulo para transformação de nossos tempos é a tecnologia de informação e comunicação. Recentemente, a discussão esquentou nos círculos médicos. A conexão médico-paciente não presencial ficou na berlinda, recomendações oficiais sobre telemedicina tiveram aceitações não uniformes. O blog bioamigo posicionou sua tendência favorável.

Muito embora, possamos considerar que o momento atual implica no que George Loewenstein (nascido em 1955) ensina no seu artigo Hot–Cold Empathy Gaps and Medical Decision Making (2005) que na situação hot tendemos a superestimar a estabilidade, ou seja, quem vai com fome ao supermercado enche o carrinho de compras, como a preocupação do Covid-19 afeta a todos, um olhar diferente e dependente do que ocorre pode minar resistências contra conexões médico-paciente não presenciais. Na verdade, um efeito pedagógico pode vir a reforçar a argumentação da sua validade, que há momentos análogos de crise ou de inconveniência de deslocamentos onde há legitimidade.  Quem sabe, na sacudidela, certos preconceitos possam se liquefazer e valores possam ser reanalisados.

Evidentemente, há necessidade de uma regulamentação judiciosa, mas agora mais imparcial em relação a prós e contras, como por exemplo, a questão do sigilo. O que não pode sofrer metamorfose é a tradição da medicina avalizada pela imortalidade de Hipócrates (460ac-370ac). Anamnese e exame físico são inegociáveis. Recordemos o Artigo 32º do Código de Ética Médica de 1953: Não é permitido ao médico prescrever tratamento sem exame direto do paciente, exceto em caso de urgência ou de impossibilidade comprovada de realizar esse exame.  Impossibilidade, cada um tem a sua, mas pode inserir-se num contexto coletivo.

Finalmente, cai como uma luva o pensamento de John Kennedy (1917-1963) que tomo a liberdade de deixar no original para evitar qualquer prejuízo ao valor: The Chinese use two brush strokes to write the word ‘crisis.’ One brush stroke stands for danger; the other for opportunity. In a crisis, be aware of the danger – but recognize the opportunity.

A crise vem, a oportunidade encaminhamos!

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