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774- Não, um advérbio estranho na beira do leito

A beira do leito é essencialmente pedagógica. Ela ensina ao médico, por exemplo, que a restrição moral ao direito do paciente de expressar Sim ou Não ao estado da arte da medicina no iminente risco de morte reversível pode ser estendida para situações emergenciais outras afastadas da iminência de perda da vida.

É o que se observa na  conjunção entre  autoimposição ao consentimento (paciente)/dever de cuidar (médico) pela natureza emergencial da situação clínica. A dor forte é ilustrativa da predisposição ao consentimento automático, vale dizer, da improbabilidade do não consentimento.

A perspectiva da beneficência aguardada costuma falar mais alto do que objeções por não maleficência, uma expressão da forte influência do estado clínico sobre a tomada de decisão, uma forma de não-liberdade prática que se articula com o expresso como hot-cold empathy gap and medical decision making por George Loewenstein (nascido em 1955).

Não obstante, o consentimento do paciente nesta natureza emergencial afastada da iminência de morte e, especialmente, após o controle do sintoma fustigante, não representa licença para sequências de investigação diagnóstica ou  complementações terapêuticas. O Sim aflitivo deve ser visto como circunstancial e eventuais desdobramentos exigem esclarecimentos e renovadas afirmações de anuência pelo paciente.

Em outras palavras, passada a fase quente, o paciente pode dar novos valores ao atendimento médico, inclusive, o grau máximo da abolição da vontade de se submeter à medicina pela manifestação do, o que significa a expressão de um Não ao médico. Quem vivencia a beira do leito coleciona exemplos.

A Bioética da Beira do leito destaca alguns tipos de não consentimento do paciente à recomendação médica ética: a) não consentimento total e radical; b) não consentimento total e não radical; c) não consentimento parcial e sujeito a ajustes; d) não consentimento provisório; e) não consentimento apriorístico; f) não consentimento não expresso diretamente.

Na gênese das várias modalidades não pode ser desconsiderada uma centralização na própria personalidade em detrimento da doença e influenciada por efeitos presumidos sobre a liberdade individual.

a) não consentimento total e radical: o paciente está capaz e plenamente convicto da sua contraposição à medicina e exige sua liberdade, como o que acontece na alta a pedido;

b) não consentimento total e não radical: o paciente está capaz, contrapõe-se à medicina que lhe é recomendada, mas reconhece alguma dúvida sobre a sua decisão, embora insuficente para o demover da posição tomada;

c) não consentimento parcial e sujeito a ajustes: o paciente está capaz e expressa seu não consentimento a pontos da recomendação que poderiam ser eticamente contornáveis com algumas adaptações pelo médico sem prejuízos à beneficência e à não maleficência.

d) não consentimento provisório: o paciente está capaz, despreparado emocialmente ou se sentindo mal esclarecido  a respeito do que considera má notícia. Após um periodo de tempo que permite a melhor compreensão – inclusive por ouvir uma segunda opinião- o Não transforma-se num Sim.

e) não consentimento apriorístico: o paciente capaz está diante do médico, muitas vezes por alguma imposição externa, já decidido a não aceitar as recomendações. Exemplo é o fumante inveterado.

f) não consentimento não expresso diretamente: o paciente capaz consente em se submeter à recomendação médico, mas, na sequência, algum fato transforma o Sim num Não. O efeito bula exemplifica.

Dizer Não ao médico é complexo, habitualmente um dilema entre a sensação de dever com a resolução da doença que se alinha ao princípio da beneficência e o direito da liberdade de expressão embutido no princípio da autonomia. Uma combinação de prudência, compaixão e tolerância é útil para o médico poder envolver-se com o Não do paciente e manter-se um ajustado agente moral da medicina.

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