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750- Atavismo hipocrático (Parte 1)

Somos cerca de 500 mil filhos brasileiros do Pai da Medicina. Consideramos Hipócrates (460 ac–370 ac) imortal. O tradicional juramento às sucessivas e emocionadas formaturas do médico brasileiro assim indica seu potencial de influência no ecossistema da beira do leito atual. Valores hipocráticos como o sigilo profissional e o primum non nocere  preservam-se contemporâneos.

Todavia, muitos gostariam de destruir a imagem de Hipócrates como destituída de utilidade para a formação do médico e irrelevante para o exercício do profissionalismo. A Bioética da Beira do leito discorda e valoriza a contribuição da imagem de Hipócrates como um fio condutor da atenção ao médico ao princípio fundamental II do Código de Ética Médica vigente- O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. Um ser humano cuidando de outro ser humano.  A inédita recomendação de Hipócrates de proibição de aplicação de qualquer substância abortiva representou um direcionamento da mente dos que prtendiam seguir a medicina para uma conduta em prol da vida.

A militância em Bioética mostrou-me razões para admitir a sabedoria de Hipócrates como referência inspiradora tanto pelo pioneirismo quanto pela longa sobrevida para a análise de frequentes contrapontos entre a razão e a emoção que acontecem nos atendimentos às necessidades de saúde. No  simbolismo de olhai por nós!, no afã da busca de padrões orientadores, algo atávico relativo ao grego da ilha de Cós existe no médico quando assina e carimba cada arte de aplicar a ciência alinhado ao disposto no princípio fundamental VIII do Código de Ética Médica vigente– O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar a sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. 

Em meio às metamorfoses do ecossistema da beira do leito produzidas pelos progressos da medicina, pela globalização, pelo apoio da alta tecnologia e pelas constantes mudanças da sociedade, a preservação do respeito profissional beneficia-se da lembrança que a vida é curta, a arte é longa, a oportunidade é fugaz, a experiência enganosa, o julgamento difícil, um pensamento atribuído a Hipócrates – está inserido no Corpus Hippocraticum que é uma coleção de cerca de 60 textos escritos por diversos autores, muito provavelmente apenas em nome de Hipócrates, talvez com algum conteúdo original.

O quinteto acima de observações teria inspiração no conceito formulado pelo Pai da Medicina que a doença é um processo natural que exige do médico a observação dos vaivéns de acontecimentos para formular as questões que possibilitam a compreensão e os cuidados. Mais recentemente, o desenvolvimento da medicina baseada em evidências reproduziu de alguma maneira a dissociação da medicina dos deuses gregos na medida em que contestou o domínio do magister dixit, a expressão latina que dava fim ao diálogo- ou já o impedia.   

Nem sempre foi ou será fácil exercer uma medicina ética – portanto adaptada ao seu tempo- que concilie os valores profissionais gerais que são deveres e os valores individuais de cada paciente, estes associados a desejos, preferências e objetivos que não exigem maiores justificativas para serem manifestados e acatados.

Em outras palavras, somente os imprescindíveis valores profissionais não bastam, eles não propiciam poder de controle absoluto da beira do leito, e, assim, a contemporânea responsabilidade com o respeito ao direito à autonomia do paciente, vale dizer a sua voz ativa, é fonte de confrontos. Inexiste um atendimento sequer sem algum tipo de contraponto entre paciente e profissional da saúde, embora muitos fiquem apenas no pensamento.

Os dois valores hipocráticos do sigilo profissional – ideia de Hipócrates para ganhar a confiança do paciente que sua revelação íntima não seria exposta a terceiros-  e do primum non nocere –  a convicção que medicina não era conjectural-,  adaptado aos momentos da medicina mantêm-se no mais alto nível ético, portanto, conciliáveis ao respeito ao paciente. Por exemplo, é vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo… por consentimento, por escrito, do paciente (Art. 73 do Código de Ética Médica vigente). Eventuais adversidades julgadas danos inaceitáveis pelo paciente eliminam aplicações com amplo excedente beneficente, que costuma ser frustante para o médico, mas que é um direito humano. São 26 séculos de contribuição!

A Bioética da Beira do leito alerta que na arte de aplicar a ciência na beira do leito coexistem influxos morais que podem ser  resumidos como respeito ao paciente e direcionamentos profissionais para o seu bem – o médico agente moral de beneficência-  e influxos da espiritualidade dita laica, portanto não ligados à religião, determinados pelas individualidades do ser humano vulnerável pela doença, como as relações de cada paciente com sofrimento, envelhecimento e sentido de sobrevivência. Sabemos que beneficência/não maleficência não impedem a terminalidade da vida, o que ilustra que devemos separar valores morais e valores espirituais. Cada atendimento é um encontro que carrega expansões e limitações, ambas sujeitas a circunstâncias morais (em relação ao outro) e espirituais (em relação a si próprio) em combinações infinitas.

Eclode, então, a questão de interesse da Bioética da Beira do leito: Podemos ligar esta espiritualidade laica do paciente ao seu direito à autonomia? Estimo que sim, que devemos, que está na essência deste princípio fundamental da Bioética de grande impacto na conexão médico-paciente. Assim sendo, a expressão maior  desta simbiose espiritualidade/autonomia está representada nas simples – em qualquer idioma- palavras Sim ou Não do exercício do consentimento livre e esclarecido. Estas três letras tornaram-se representação de uma visão hierarquicamente superior à moralidade da beneficência pelo profissional da saúde. Não é não e qualquer desrespeito só não será uma violência profissional se enquadrado em previstos como uma emergência clínica.

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