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742- Reflexões de um comprimido sobre Bioética

Crédito: https://br.freepik.com/vetores-premium/rosto-sorridente-com-boca-aberta-e-suor-frio_1477298.htm
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Olá, sou um comprimido. Sinto-me confortável bem acondicionado numa cartela dentro de uma caixa na segunda prateleira do armário aberto bem atrás do balcão de atendimento da farmácia. Todos têm que me engolir…

Sou um medicamento muito prescrito e logo deixarei meu aconchego e serei levado por um fluxo de água para uma viagem, um longo caminho cheio de etapas até o sangue e receptores celulares. Sou muito prestativo, tenho funções específicas, mas, de vez em quando, é verdade, arranjo umas encrencas. Por favor, detesto ser chamado de genérico.

Adoro quando a Bioética da Beira do leito divulga o que sou num decálogo, sinto-me valorizado:

  1. Sou exigente do rigor científico– só aceito ser prescrito sob critérios validados, faço parte de diretrizes clínicas nacionais e estrangeiras com ótima dimensão de efeito e probabilidade de certeza de utilidade e eficácia;
  2. Sou consciente que posso me envolver com situações fora do comum. Assim, minha mente tem abertura para o desconhecido, o inevitável e o imprevisível;
  3.  Valorizo a tolerância, respeito profissionais da saúde e leigos que tem opinião contrária sobre a minha eficiência, eu sei do que sou capaz e é o bastante para mim.
  4. Sei que sou ao mesmo tempo um bem e um mal e, portanto, alinho-me com a lógica do terceiro incluído, ou seja, possuo tanto um componente A (potencial de beneficência) quando o não-A (potencial de maleficência). Confesso que só fui entender este aspecto revelado pela física quântica e que limitou a hegemonia da clássica lógica do terceiro excluído (A e não-A não podem coexistir no mesmo elemento) quando me compararam com um bastão de madeira. Agora consigo me imaginar, embora redondinho, com duas extremidades, a do benefício e a do malefício, sem que formem exatamente uma contradição. Compreendi que eu não posso me livrar do potencial de malefício, pois se serrar a extremidade do malefício para me desvencilhar dele, surgirá outra extremidade e assim por diante. E se quiser prosseguir sem parar vou acabar eliminando a extremidade do benefício. Que alívio saber que a minha condição de sal atuante sobre o biológico não pode deixar de carregar indeterminações.
  5. Entusiasmo-me por motivar níveis distintos simultâneos de realidade, outra contribuição da física quântica para a Bioética da Beira do leito. Os doutores fazem isso habitualmente quando desenvolvem o que eles chamam de raciocínio clínico. É mais ou menos isso: eles estão diante de uma realidade física, por exemplo, o paciente com insuficiência cardíaca grave, aí eles usam a memória de casos semelhantes vivenciados e pela imaginação anteveem uma nova realidade, o paciente eupneico, para minha satisfação, pondo fé na minha atuação! Ao mesmo tempo, eles visualizam o paciente ainda mal e já melhor. Fico triste quando a realidade que imaginam é que não poderei ser útil. Esta realidade psíquica simultânea que permite lidar com tempos distintos me liga à experiência – saber das coisas pelo passado- e à capacidade para desenvolver o futuro. É gratificante!
  6. Exijo que minha participação seja cogitada com prudência. O doutor tem que respeitar minha farmacocinética e farmacodinâmica e conhecer bem como estão as funções do paciente para me receber. Fico apreensivo quando o doutor não considera que contraindicação é uma indicação que persiste como beneficência para um determinado objetivo mas sem chance de realização de um benefício geral para o paciente em função de comorbidades. Sinto-me num redemoinho quando faço um mal porque não respeitaram minhas limitações.
  7. Sensibilizo-me com o zelo com que me aplicam ao paciente. É bom ver tudo certinho, dose, horário, tempo de uso, preocupação com interações medicamentosas e alimentares. Felizmente, o prontuário eletrônico acabou com a letra de médico, quantas vezes eu não me reconhecia na prescrição. Fico mais tranquilo quando um meu colega me acompanha para evitar que eu provoque algum dano ao paciente.
  8. Guardo com carinho um certificado de Beneficência. Foi suado, trabalhei com muitos voluntários de pesquisa até especialistas em medicina baseada em evidências concluírem que eu era útil, eficaz e pouco danoso. Durante as pesquisas ficava imaginando que eu era um grão de sal de cozinha e, portanto, tinha uma disposição recíproca com a água, eu dissolvia na água que era o paciente e ele estava capacitado a me dissolver. Fazia bem perceber que mesmo separados, o paciente e eu, ou seja a água e o sal de cozinha, conservariam a reciprocidade, mas que poderiam sofrer  influências, por exemplo da temperatura. Aí, cada vez que eu era testado, ficava me perguntando se aquele voluntário de pesquisa não poderia ser ou gelo ou vapor d´água e me reprovaria. não me dissolveria. Felizmente, a maioria dos voluntários de pesquisa funcionou como água líquida, me dissolveu e permitiu que eu mostrasse minha utilidade.
  9. Sou muito cioso da Não maleficência. Aprendi que foi um grego chamado Hipócrates que disse primum non nocere e como se tornou o Pai da medicina, todos os seus filhos universais recebem a lição. Por isso, exijo a prudência. Detesto ser um agente de um grave dano quando este for fortemente previsível.
  10. Ultimamente, aprendi a conviver com a Autonomia do paciente. Acompanho tranquilamente o doutor para que ele me apresente ao paciente e fale sobre bons e maus efeitos. Fico pacientemente aguardando o consentimento livre e esclarecido. Às vezes o paciente me rejeita, paciência! Adoro quando o doutor não me prescreve por Imperativo de consciência só porque o paciente pede, sem nenhuma indicação. Mas o que não suporto é a bula, acho ela mais enrolada ainda de como fica dentro da caixa do medicamento. Fico possesso quando já estou na residência do paciente, ele lê a bula e me leva de volta para a farmácia … e me troca por uma caixa de sabonete!

Agora lá vou eu para a missão, o farmacêutico tirou a caixa da prateleira. Em breve estarei honrando a confiança!

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