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734- Bioética aos montes (Parte 2)

A indeterminação que nos remete para o paradoxo de sorites refere-se a dificuldades de se estabelecer limites consensuais entre o que pode ser interpretado na beira do leito como um bem e como um mal. Toda conduta médica admite mais de uma realização e a percepção do que representa em termos de vantagem ou de desvantagem pode ser expressa por uma linguagem contraditória.

Indeterminações fazem o médico afirmar e ao mesmo tempo colocar uma dúvida- este medicamento fará você eliminar o excesso de líquido mas poderá baixar muito a pressão arterial. Fica impreciso a partir de que números será  muito e acarretará dano para a circulação de órgaõs como coração e rins nas circunstâncias daquele paciente, quando então, o benefício terapêutico pode ter se tornado um malefício etiopatogênico.

Assim, há uma plasticidade de realidade entre o verdadeiro e o falso, ou seja, nenhum benefício pode ser visto de modo absoluto na medicina contemporânea, pois adversidades podem ocorrer de modo previsível ou não. Supondo uma queda diária de 3 mmHg da pressão arterial e ausência de sintomas ou sinais, todos os dias teríamos que lidar com a indeterminação- o benefício metamorfoseou para malefício?

De modo paradoxal, o mesmo nível baixo de pressão arterial que (já) determinaria providências  num outro paciente em função de princípios básicos e gerais que o consideram danoso, é entendido como um (ainda) não dano naquele sob uso de diurético. Uma eventual linha de corte fica no terreno da indeterminação.

Em outras palavras, considerando a sintaxe que trata das funções das palavras e as relações estabelecidas entre elas, o termo hipotensão arterial será para a objetividade do médico (ainda) expressão do benefício ou um (já) alerta de malefício na dependência da sua análise crítica.

Trabalha-se com uma margem de erro que depende das circunstâncias, ou seja, a medicina aprendeu a decidir a indeterminação ou pelo raciocínio clínico baseado na vivência e/ou pela fixação de critérios baseados em pesquisas, que em última análise, dariam uma determinação – sujeita a mudanças-  em resposta ao paradoxo de sorites na beira do leito.

Assim, pode haver um ponto de inflexão da curva da pressão arterial que pesquisas definiram como fator de mudança de comportamento orgânico, que é um atributo de verdade. Mas, o significado clínico dos números será flexível. A base de a clínica é soberana foi construída justamente pelo sentido clínico de dados/fatos, a hierarquia na percepção mais do que no conceito, o que alçava a experiência de fato vivenciada ao topo da excelência profissional.

Na medicina contemporânea convivem conhecimento/atributo/verdade e pensamento/significado/valor que influenciam a hierarquização do conceito ou da percepção. Em tempos de medicina baseada em evidências, de protocolos clínicos e de diretrizes clínicas, o paradoxo de sorites- um mesmo núemro de grãos já deixou de ser um monte/já se tornou um monte-  traz um alerta sobre desconsiderações indevidas da legitimidade de passos clínicos guiados pela tradição do olho clínico, do olhar de relance, do sinal patognomônico, enfim, do préstimo da experiência de fato vivenciada.

A propósito, um percentual de médicos  não tolera as hesitações do paciente para expressar o consentimento, mas esquecem que suas próprias indeterminações são justificáveis etiopatogenias das dúvidas!

Continua na parte 3

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