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692- O não consentimento do paciente, uma minoria forte (Parte 3)

O presente artigo teve a prestigiosa colaboração da fonoaudióloga Leny Kyrillos, a quem agradecemos a sempre gentil atenção com o blog biomigo.com.br

LK

Fonoaudióloga Leny Kyrillos

Pelo efeito do não consentimento do paciente Luis ao médico Dr. João, exteriorizou-se a circunstância não habitualmente prevista na faculdade de uma sensação profissional de inversão de forças decisórias na conexão médico-paciente que repercute  no contexto da integração entre beneficência/não maleficência e autonomia. Há um rearranjo sobre utilidades, adversidades e preferências com grande chance de provocar divergências irreconciliáveis.

O paciente Luis revela-se seguro da sua negativa- pretende o maior peso da autonomia- e o médico fica enxergando vulnerável a sua cultuada base tecnocientífica. Dada a insegurança do cenário, o Dr. João não escapa de duelos com a própria consciência atormentada pela beneficência negada, pelo sentido de correção profissional de sua recomendação e pelas evidências clínicas da necessidade da sua intervenção.  O perigo para a continuidade profissional corre por conta de um eventual mergulho defensivo em indiferença e insensibilidade, ambas inaceitáveis e insuportáveis na beira do leito.

O Dr. João foi treinado a (bem) cuidar e por isso, permaneceu latente o terrível receio sobre juízos de imprudência e de negligência por terceiros. É um espinho cravado. O Dr. João sempre hierarquizou o valor do cuidado ao paciente, aliás, ele considera paciente sinônimo de ser humano vulnerável que precisa acolher. Tenho que cuidar consta com destaque no seu dicionário vocacional.  É o típico idealismo ainda reluzente que faz o médico tomar a norma por realidade. Todavia, a convivência com a diversidade da condição humana na beira do leito fará o Dr. João entender que se a verdade é do conhecimento, o valor é do desejo e certas realidades podem se tornar a norma do momento.  Qualquer risco de conotação de descaso é difícil de ser profissionalmente aceita.

Recentemente, o Art. 13 da Resolução CFM Nº 2.232/2019  dispôs sobre o que os Comitês de Bioética têm  orientado, ou seja, não tipifica infração ética de qualquer natureza, inclusive omissiva, o acolhimento, pelo médico, da recusa terapêutica prestada na forma prevista na Resolução https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2232. Mas, na minha opinião, não haverá um efeito imediato nos doutores joões, os seus interiores terão dificuldade em não se sentirem tolhidos na integridade profissional. Eles relutarão em enxergar no não consentimento do paciente um abrandamento da sua responsabilidade profissional. Uma forte interferência na pedagogia acolhedora da beira do leito que precisa ser bem explicada aos jovens médicos para prover um mínimo de segurança ética.

Um atavismo hipocrático mantém vigoroso o pensamento do Dr. João que sua missão precisa ser cumprida. Pelo que exteriorizou do Comitê de Bioética que foi contatado pelo Dr. João, o médico  avançou na resolução dos conflitos causados pelo dilema moral.  Há uma responsabilidade  dos Comitês de Bioética neste mister, pois  não pode ser desconsiderado que as novas gerações de médicos talvez relaxem suas reações acerca do não consentimento do paciente e desemboquem num reducionismo burocrático- se é assim que o paciente deseja, assim será… mas, que não fico satisfeito, não fico…

O esclarecimento do médico oferece elementos objetivos para que o paciente e sua família possam fazer escolhas, razão pela qual é essencial que os médicos disponham-se a se comunicarem de modo assertivo e generoso. Trata-se de buscar vocabulário de uso mais habitual, com frases curtas e diretas. Vale evitar termos técnicos e estrangeirismos!

A comunicação não verbal deve demonstrar claramente a vontade de interagir, de se abrir para o contato: olho no olho, tronco voltado para a pessoa, gestos abertos e naturais. A escuta também é muito importante! Ouvir com atenção e paciência, sem interromper, demonstrar compreensão por meio de meneios de cabeça e parafrasear o que foi dito a cada período gera acolhimento e empatia. A voz deve ser clara e a articulação dos sons precisa ser firme, como um abraço sonoro. São cuidados que dão a convicção do dever dignamente cumprido , inclusive por favorecer a melhor escolha por parte do outro.

A qualidade da comunicação verbal e não verbal de certa forma  trabalha a favor da possibilidade da mudança de não consentimento para consentimento pelo paciente, um comportamento de que  a maioria dos médicos nunca desiste facilmente. Não se pode negar que há a tendência profissional natural à insistência – não consigo enxergar um médico que aceita passivamente um Não do paciente que influencie fortemente o prognóstico clínico. Por isso, é essencial haver um treinamento para que iniciativas bem estruturadas de persistência de esclarecimentos direcionem para uma modalidade branda de paternalismo (compassivo) e afastem-se do paternalismo forte (coercitivo).

O despreparo evidenciado pelo Dr. João ao Não do paciente é fruto da despreocupação curricular com a circunstância, pois a tônica do ensino ao estudante de medicina é o afirmado por Aristóteles (384 ac-322 ac): é fazendo que se aprende a fazer aquilo que se deve aprender a fazer. Os valores do cidadão João foram lapidados pelo cinzel do profissionalismo para a superior  expressão da sobrevida e da qualidade de vida do paciente.

São os encontros médico-paciente na beira do leito que farão do Dr. João o médico que ele entende que deva ser. Ele ousará expansões e observará limites. O estilo de comunicação será fundamental para compartilhar com o paciente realidades das lacunas da medicina, limitações dos recursos e contraposições entre o dever de atuar profissionalmente fazer e o respeito ao direito à autonomia pelo paciente. A comunicação contribui para uma genuína proteção ética para o não fazer quando seria para fazer, para os devidos esclarecimentos acerca do necessário, possível, impossível, permitido e recusado.

A Bioética da Beira do leito entende que a minoria de pacientes constituída pelo não consentimento definitivo à recomendação médica deve ser  alvo de renovadas análises críticas sobre posições radicais, tolerância, ajustes, caso a caso, enfim, de reflexões sobre as dimensões de entendimentos morais que cabem sob o guarda-chuva do respeito à pessoa nas várias modalidades de cuidados da saúde.

Inspirado em Aristóteles, é não fazendo o que está sendo impedido pelo próprio paciente que se aprende a não fazer aquilo que se deve aprender a não poder fazer. É pós-graduação sobre não consentimento essencial na sala de aula chamada beira do leito!

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