PUBLICAÇÕES DESDE 2014

688- Afaste da beira do leito o cale-se (Parte 4)

A voz ativada do paciente sob respaldo ético e legal é conquista recente da sociedade brasileira. Tornou-se um direito que já foi negado e, inclusive, entendido como prejudicial. Faz parte do museu da história da ética no Brasil o título do Capítulo 12: Preceitos que se recomendam ao publico seguir em beneficio dos enfermos e da harmonia que deve reinar entre o grêmio médico do Código de moral médica de 1929 e seus artigos 7º- os enfermos não devem fatigar o médico com narrações de circunstância e fatos não relacionados com afecção. Portanto, neste ponto, limitar-se-ão a responder em termos precisos às perguntas que se lhe dirijam, sem estender-se em explicações ou comentários que, longe de ilustrar, tendem mais a obscurecer a opinião do medico e 8º- o enfermo deve implícita obediência às prescrições medicas, as quais não lhe é permitido alterar de maneira alguma; igual regra é aplicada ao regime dietético, ao exercício e qualquer outras indicações higiênicas que o facultativo creia necessário impor-lhe. Paternalismo fortíssimo na veia! Mas, como se sabe, a diferença entre remédio e veneno é a dose. Doses tituladas de paternalismo podem ser cogitadas em certas circunstâncias.

Será que é justo na complexidade da saúde empoderar a autonomia – e sua expressão pelo consentimento- num nível absolutista? No afã de contornar desníveis de autoridade, um uso irresponsável do poder, não se cria outro desnível ao avesso que pode prejudicar o paciente?

Está certo que é altamente majoritário o consentimento positivo do paciente no mundo real da beira do leito, mas, soa-me indevidos, não somente o desvio para um aspecto puramente burocrático (leia-se escassamente esclarecido) que tem ocorrido – que aparta do espírito do princípio da autonomia-, como também, a inibição a mais alguma rodada de argumentação pelo médico causada pelo receio de um juízo de abuso de autoridade após um não consentimento pelo paciente. Como se diz, para todo exagero há uma dose menor admissível.

Entendo que a visão de dominância teórica da autonomia do paciente no processo de tomada de decisão, por mais justificável frente às chances de abuso do médico, não deve reprimir o exercício de um paternalismo profissional prático.

Autonomia sem restrição e paternalismo dosado podem e devem dialogar na beira do leito. Cada caso terá seus vaivéns ao redor das informações que direcionam para melhores esclarecimentos. A liberdade para as idas e vindas extravasa as tensões, pois insistências isentas de hostilidade e por períodos não exagerados não caracterizam violência profissional.

É comum observar que a resistência do paciente em aceitar a medicina do médico não é sinônimo de perda da confiança no profissional. Aprendi que a mais ética conexão médico-paciente não é aquela que parece já estabelecida, na verdade, é a que está sendo constantemente refeita sem amarras. É impossível ignorar que a soma do gigantismo de circunstâncias clínicas com as infinitas condições humanas individualizadas resulta em inúmeras combinações de liberdade teórica (direito do paciente em manifestar preferências), não liberdade prática (o paciente se sente bem e preferiria estar na sua cama com o seu travesseiro, mas o que fazer com os soros, os drenos, os controles frequentes e as ainda incertezas?), não liberdade teórica (o médico obriga-se a solicitar o consentimento do paciente) e liberdade prática (Não é Não!).

O médico ético – pleonasmo para a maioria- energiza o propósito de produzir o bem no acervo da tecnociência, contudo, há um poder moderador do paciente a ser respeitado, vale dizer, pela evitação de atitudes de coerção, desvios da intenção e excessos de racionalidade sobre a capacidade leiga de tomar decisões.

O excessivo é inaceitável, mas, apesar de tudo, é insuficiente para o radicalismo de proscrever totalmente o termo paternalismo da beira do leito, pois ele admite significados com conotação proveitosa para a reciprocidade da conexão médico-paciente. Entendo que nem o médico deve vestir a capa paternalista de super-homem, nem o paciente deve se valer da pedra de criptonita para fazer prevalecer a autonomia.

Presumo- talvez tenho certeza mesmo- que a evolução linguística depreciativa do termo paternalismo na beira do leito possa ter tido o propósito de corrosão da eticidade como pressão para o domínio do termo autonomia. O intuito de estabelecer uma substituição sem volta, associando a uma interpretação de unilateralidade, de autoritarismo, de interferência inflexível e, assim, oposta a um sentido de  liberdade para o paciente. Todavia, nenhum dicionário consigna paternalismo como antônimo de autonomia.

Na beira do leito, o termo paternalismo foi demonizado para provocar como uma queima de arquivo de uma medicina compassiva a fim de não prejudicar o direito à autonomia. Se excedo na medida, que o bioamigo me perdoe, posso estar contagiado pela indignação incrustada que foi causada pela demolição do prédio da querida Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, uma arbitrariedade, uma crueldade com um patrimônio da medicina brasileira perpetrado para enterrar qualquer chance de retrocesso da mudança para a ilha do Fundão.

Não são precisos muitos anos de convivência para o médico constatar que beira do leito é sábia, é séria, é atenta. Por isso, ela é a primeira a demonstrar que a necessidade de eliminar um paternalismo deformado por violência, coerção e proibição não colide com  a manutenção de um paternalismo voltado para o amparo compassivo.

Assim, não devemos pensar na equação de autonomia versus paternalismo, mas considerar a autonomia +paternalismo. É mais compatível com o comportamento de afastar o cale-se da beira do leito.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES