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679- Abuso, intruso e confuso

O prefixo ab pelo sentido de afastamento permite pressupor que o abuso na beira do leito prejudica o uso da medicina. Abusos na beira do leito representam habitualmente a aplicação do binômio força-controle para a manipulação de condutas à margem das melhores práticas. O abuso pode passar despercebido do paciente e a violência assim praticada pode ter influência no prognóstico.

Zonas cinzentas entre uso e abuso constituem pontos nevrálgicos da aplicação moral, ética e legal na beira do leito, razão do interesse pela Bioética da Beira do leito. Dentre as causas de abuso na beira do leito estão conflitos de interesse, ganhos secundários e, até, um sincero convencimento de melhor interesse, muito embora sob bases equivocadas.

Se o (bom) uso pode resultar alinhado com o princípio da beneficência, o abuso pode ser combatido ou se abrigar no princípio da autonomia. A história da Bioética registra que o direito do paciente ao princípio da autonomia foi estimulado a partir de pesquisas antiéticas, especialmente, na primeira metade do século XX  e, subsequentemente, migrou para a assistência na concepção do direito à voz ativa  sobre tudo que possa dizer respeito à saúde. Desta forma, aplicação do princípio da autonomia pelo paciente coopera no combate ao abuso em nome da tecnociência em medicina. Pode-se dizer que ameaças por conflitos de interesse e de ganhos secundários profissionais têm no direito do paciente de exercer autonomia no processo de tomada de decisão uma salvaguarda de peso.

Acresce neste aspecto de combate ao abuso, situações de boa-fé do profissional da saúde mas que colidem com preferências, desejos, valores e objetivos do paciente. Após a emissão de um Não definitivo à recomendação médica, o abuso refere-se a eventuais aplicações em desrespeito, habitualmente com uma intenção dissimulada num esclarecimento pouco abrangente.

O princípio da autonomia pode, outrossim, abrigar o abuso. Há cerca de 20 anos, nos primórdios da valorização do princípio da autonomia, o pediatra William G. Bartholome  (https://doi.org/10.3928/0090-4481-19890401-09) chamou a atenção para a aplicação do termo de consentimento livre e esclarecido não condizente com o respeito à pessoa do paciente. A causa estava vinculada ao entendimento dos pediatras  que o responsável legal era quem deveria ter o poder de dar o consentimento em nome do menor de idade. Tudo estaria muito justo, mas acumularam-se limitações. E aí, entrou a questão do eventual abuso da autoridade do responsável legal em manifestações de recusa a procedimentos no menor de idade perante nítidas possibilidades de comprometer indevidamente a saúde e o bem-estar. Considerações sobre direitos e deveres geraram tensões no entorno das recomendações médicas. Percebeu-se, então, que o menor de idade não deveria ser tão passivo, dando início a iniciativas para dar tanto voz ativa quanto ouvido ativo ao menor de idade, que pelo menos ele fosse informado e tanto quanto possível esclarecido sobre os procedimentos e decorrências. Atualmente, há a figura da anuência pediátrica (American Academy of Pediatrics) e, até mesmo, do endosso a um consentimento pelo menor de idade ligado à capacidade de manifestar preferências estáveis.

No campo da pesquisa, o abuso pode se dar num eventual consentimento do responsável legal para que o menor se torne voluntário em pesquisa que não lhe trará nenhuma perspectiva de vantagem clínica, apenas os riscos das adversidades possíveis.

Circunstancialmente, neste segundo semestre de 2019, dois temas trazem preocupações éticas no contexto, a vacinação e a administração hormonal para menor considerado do  gênero trans.

Quando o pediatra entende que há um abuso na recusa do responsável legal em autorizar um procedimento de alta influência no prognóstico clínico do menor de idade, após resultarem infrutíferas tentativas de reversão por atuação multiprofissional, caminhos a serem seguidos são a convocação de autoridade pública para a infância e a adolescência e a obtenção de uma ordem judicial. Trazem a curiosidade: a liberdade ao (não) consentimento pelo responsável legal não é liberada na beira do leito do menor de idade e passa a vigorar uma expressão de paternalismo – substitutiva ao paternal familiar- médico, estatal e judicial. Ou seja, o sentido de consentimento livre e esclarecido fica no menor de idade condicionável ao tipo de resposta. Contraposições entre os direitos fundamentais à vida e à consciência – por procuração.

Interessante como cada fio que se puxa sobre temas éticos, morais e legais da beira do leito indica uma meada de vaivéns, pluralidades, diversidades, contraposições, ambiguidades, certezas jamais incontestes. Tudo isto em volume e intensidade crescentes. Vida longa para a Bioética!

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