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673- A doença, o médico e influências na biografia do paciente

Fui surpreendido com a fala do filho de um paciente já falecido: “… O meu pai gostava muito do senhor, mas no dia que em que o proibiu de fazer academia ele chegou em casa dizendo que não voltava mais na sua consulta…” . Revi o prontuário, fora na década de 90 do século passado e havia um agravamento da insuficiência cardíaca por carência de miocárdio viável.  Contudo, minha preocupação profissional não agradou, materializou-se como uma violência moral.  Faltou diálogo! Um, dois, três… Os quantos necessários…

Esta proibição heteronômica – provavelmente não perguntei ao paciente sobre como via a proibição- precedeu a minha iniciação em Bioética. Proibir dava uma sensação de segurança profissional, evitava qualquer subsequente acusação de imprudência. No caso acima, pretendi colocar o paciente numa concha de proteção em função dos limite da terapêutica reversora disponível e do prognóstico consequente.  Supus que serei bom para o paciente, mas, na verdade, não foi bom para nenhuma das partes. Lembram-se  do caso do jogador de futebol Serginho que faleceu em campo?

Cogito que posso ter perdido outros tantos pacientes por tê-los desgostado com proibições, ou no mínimo, ter dado uma condução exagerada, radical para evitar imprevistos. E, interessante, nesta época, eu já estava conscientizado que não mais deveria enfatizar ao fumante os malefícios do cigarro pois soaria como ameaça infrutífera.

Hábitos são fortes e geram tensões quando há a interferência do médico. Vem a imagem dos anjinhos bom e mau em cada ouvido. Atualmente, a internet  faz com que a sociedade precise menos do médico para qualificar seus hábitos, assim aquele sedentário, fumante e glutão sabe muito bem a que anjinho deveria seguir. Deveria…

Proibir de modo categórico o paciente para que não passe por algum risco em função de cogitações sobre as limitações proporcionadas pela doença poderia ser uma forma de tribalismo, ou seja, conformidade preferencial com um artigo do Código de Ética Médica vigente (Art. 32- É vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente) em relação a desejos, preferências, valores e objetivos do paciente. O caput É vedado ao médico que existe  desde 1984 no Brasil direciona para uma desatenção com o íntimo do paciente, quem sabe uma deslealdade mesmo.

Nesta segunda década do século XXI é notório que os comportamentos na beira do leito mudaram com as transformações da medicina e da sociedade. Não é proibido proibir, mas a ênfase no permitir é bem-vinda. Ocorre menor sensação de autômato e o resgate de poder ser humano pelo paciente apesar de uma programação beneficente a ser cumprida fundamentada na fria medicina.

Saber e sabedoria alinhados na conexão médico-paciente. A arte de gerir a beira do leito direcionada para a contemporânea visão de melhor interesse do paciente como comunhão de doses de heteronomias e autonomias. A anamnese é verbalizada pelo paciente, a investigação é conduzida pelo médico, a recomendação é organizada pela medicina, o consentimento é prerrogativa do paciente, os ajustes são providenciados pelo médico, o atendimento/entendimento, enfim, é da conexão médico-paciente-medicina. Sempre lembrando que a medicina não diz o que deveria ser (gostaríamos de), mas o que é constatado, assim provocando beira do leito uma relação de forças entre a realidade da verdade e o valor da vontade.

Vislumbram-se, pois, as inconveniências de uma composição única do caso clínico de cunho paternalista forte. A voz ativa do paciente passou a dar novos contornos ao encontro do ser médico com o estar paciente. O magnetismo da Bioética que, esclareça-se, não desceu de uma nave alienígena, mas chegou passo-a-passo com as novas legitimidades de uma humana conexão médico-paciente, faz-se presente pela orientação que a condução do caso não aconteça com o paciente a ela alheio.

O exercício da autonomia, ao mesmo tempo que valoriza a empatia, pressupõe a eliminação do paciente essencialmente passivo, apenas receptivo a ordens médicas, que, em decorrência, faz crescer responsabilidades por seus atos. O aprofundamento de ordem ética, moral e legal sobre o direito do paciente à autonomia e sua interface com ao paternalismo brando (não coercitivo e não proibitivo) é tema de interesse da Bioética da Beira do leito para a mais adequada convivência entre a presença de doença, o reconhecimento do desejo, o amparo terapêutico e preventivo e a segurança biológica, ética e legal.

Por isso, a conveniência da difusão do conceito de saúde baseado em capacidade de adaptação e autogestão frente a desafios de ordem física (proteger-se contra danos), emocional (enfrentar situações difíceis) e social (cumprir obrigações e portar-se com independência), com seus itens plenamente dialogados entre médico e paciente, a fim de a vida não ficar encapsulada pelas doenças passíveis de alguma forma de controle.

O quanto a doença e o médico modificam a biografia do paciente em tempos de eficiência terapêutica e preventiva admite sucessivos cenários desafiadores. Alô Bioética!

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