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650- Um não mais inteligente

Não é um advérbio e um substantivo, uma palavra de fácil pronúncia, mas, nem sempre de emissão. Causa estresse, provoca frustrações, melhora autoestima, gera arrependimentos. Não é um frequentador da beira do leito que aciona questões éticas e legais. Não compõe um princípio da Bioética (não maleficência) ligado à segurança do paciente e é causa comum de desconexão médico-paciente (não consentimento).  Não é guia em algoritmos e em alertas sobre aplicação de diretrizes clínicas. Não indica inadmissível negligência e fundamenta desejável prudência.

Uma anamnese é cheia de nãos e o raciocínio clínico tem no não um fiel condutor para adequação da conduta, primeiro eliminando potencialidades de recomendação conceitual, depois ajustando aplicabilidades individuais.  Hipócrates (460 ac-370 ac) hierarquizou o não nos primórdios da medicina: se bem não puder fazer, que não faça o mal, o que ficou consagrado como não maleficência. Atualmente, o não consentimento pelo paciente à recomendação médica é dos mais espinhosos temas da Bioética da Beira do leito. Um exercício habitualmente angustiante de tolerância pelo profissional que conhece o prognóstico do não fazer. Não do paciente é Não para o médico e Não no médico é Não para o paciente.

Dizer não ao médico costuma ter alta carga emocional no paciente, especialmente, quando a recomendação é criteriosa sob o ponto de vista tecnocientífico. O direito ao não consentimento desenvolveu-se como proteção contra desmandos autoritários, possibilidades de aplicações imorais. Ele articula-se com individualidades de preferências, desejos, valores e objetivos, de modo que a recomendação médica tecnicamente ética, só será  aplicação ética se for pessoalmente consentida. Autoridade e liberdade num jogo de forças necessitado do olhar crítico da Bioética.

Desconhecimentos sobre métodos e efeitos motivaram a exigência pelo consentimento do voluntário de pesquisa e conhecimentos pelo consentimento na assistência. Clarezas e obscuridades tão próprias da medicina sustentam potencialidades com conotação de risco de danos nas efetivas realizações, o que fica bem exemplificado numa bula de medicamento.

O raciocínio clínico do médico costuma privilegiar a chance majoritária e desconsiderar a pouca probabilidade. Se o método não for proibitivo, que seja considerado para aplicação tendo à reboque um quê de dever de fazer e uma certa sensação de se conformar com eventuais adversidades, intercorrências tidas como indispensáveis para que haja a consecução do sucesso. Inclusive, motivo maior dos esclarecimentos para a obtenção do consentimento pelo paciente, pois se considera essencial que o paciente na sequência tenha tido conhecimento que poderia sofrer a intercorrência que veio a acontecer. Otimismo/pessimismo, confiança/ insegurança, memória/imaginação exercem influência sobre o não no exercício do consentimento, pois, as adversidades são, em geral, apresentadas de modo vago e difuso. Talvez até como um acaso, muitas vezes como fatalidade.

Uma vantagem da aplicação da inteligência artificial como um assistente individualizado para as necessidades de saúde sustentada por big data – prognosticar com base em similaridades do passado –  é ampliar o foco na individualidade das chances de adversidades. Em outras palavras, dar mais precisão à perspectiva de intercorrência, manos acaso menos fatalidade.

A redução de imprevisibilidades da aplicação de métodos diagnósticos, terapêuticos e preventivos contribuirá para aperfeiçoar a triagem do próprio médico sobre probabilidade de intercorrências e, assim, permitirá fazer esclarecimentos que proporcionem melhor apreciação sobre razões para consentimento/não consentimento por parte do paciente.

Dizem que há o momento para falar e o momento para se calar. O silêncio pode responder até ao que não foi perguntado. Na beira do leito, entretanto, é na verbalização do Sim/Não que se alinha a evidência moral, tanto mais virtuosa quanto mais sustentada pelos esclarecimentos do médico e do paciente.

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