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612- Bioética não é de marte, num Comitê é arte que se reparte

Conexão BLlivroUm jovem médico sentado na primeira fila e muito atento às falas – se um balãozinho houvesse sobre sua cabeça leríamos tenho que perguntar– faz a indagação que chega como um flecha curarizada.  Fiquei imobilizado quando ouvi: “- O Comitê de Bioética não é um instrumento a serviço do médico que tem o poder de o convocar, o que não acontece com o paciente?”. Não podia ficar sem palavras, consegui descurarizar rápido por ofício e lhe transmiti que a bioética objetiva o equilíbrio do ecossistema, por exemplo, da beira do leito, a harmonia entre o biótico e o abiótico – a propósito a machine learning seria um abiótico biotizado? Expliquei que como ética da vida, a bioética foca no ser humano em suas infinitas relações em torno de hábitos e costumes. Enfatizei que a bioética é inclusiva, que colabora para que a compaixão do médico ou simpatia como queira se disponha à participação afetiva dos sentimentos do paciente apesar de eventuais traços de antipatia, hostilidade e desconfiança por parte deste. Procurei fazê-lo compreender que um Comitê de Bioética lida com uma visão da moralidade dos comportamentos, ou seja, as relações a regras e valores, que para uns é uma questão de reciprocidades de interesses e para outros é uma questão de valor intrínseco da pessoa. Não posso relatar como o indagador absorveu a resposta, ele não mudou a fisionomia de paisagem e, após olhar rapidamente o celular, saiu apressado, já com o aparelho ao ouvido, certamente, entendendo que há assuntos mais prementes do que bioética. Interessante é que me fez recordar a incompreensão a respeito de uma observada falta de disposição da Ouvidoria em tomar assento num Comitê de Bioética e reforçou que tem ocasiões em que é melhor conhecer questões do que respostas.

Captar o ponto de uma pergunta da plateia que deve delinear resposta rápida, concisa e esclarecedora é uma arte, assim me ensinou o professor Luis Vènere Décourt (1911-2007). Um conceito pode ser resumido em poucas palavras, mas o mais importante – ele dizia- é quando a sequência das palavras faz desenvolver a compreensão do conceito. Tento sempre, mas explicar o papel de um Comitê de Bioética não é tarefa fácil, especialmente pelas interfaces com direitos e deveres cheias de convicções de exclusão pessoal.

Como contribuição para aqueles que têm a mesma dúvida do jovem indagador da platéia, apresento um esboço de teatralização para que a mudança do ambiente de uma reunião científica para a beira do leito permita mais adequada avaliação crítica.

Consente paciente! A respeitável diretriz da sociedade de especialidade de alta credibilidade reverbera com voz tonitruante de suas entranhas. Afirmo que é útil e eficaz para lhe proporcionar boa qualidade de vida e tempo de vida. Entra a ética com vestimenta sóbria e reforça que o médico tem o dever de bem esclarecer o paciente, que arranje tempo, pois falta de tempo não é desculpa. Surge a autonomia com uma camiseta onde se lê Não é Não, Sim é Sim e após uma breve apresentação sobre a sua conquista que termina com libertas quæ sera tamen inicia um diálogo acalorado com a beneficência e a não maleficência esforçando-se para apresentar razões para a conveniência dos ajustes individuais. A Bioética da Beira do leito faz uma justificativa do valor da combinação entre o saber que sustenta o progresso e a perspicácia que facilita o sucesso do profissionalismo na área da saúde. A copeira oferece cafezinho, vai de um por um, arriscando-se a ser vista num contexto de coisificação, um abiótico incidental entre bióticos atarefados, apesar da inevitável pergunta açúcar ou adoçante?

Holofotes concentrados no paciente revelam uma forte postura de não consentimento! Parece irreversível. Ele está cercado por familiares cujas opiniões são nitidamente heterogêneas. Transparece uma hierarquia familiar com a mão forte que controla a resposta. A atmosfera está pesada. Alternam-se silêncios aterrorizantes e balbúrdias instigantes. O médico propaga a visão profissional que o prognóstico da evolução natural da doença legitima os riscos de adversidade da conduta ditada pela diretriz que, energizada por 95% de probabilidade, acena positivamente com a cabeça enfiada em seus escritos, nem sempre, contudo, endossados pelo Dr. Google, incansável, onisciente, poliglota e com um número universal de CRM. A autonomia está atenta, sempre alerta, embora o escoteiro disposto à boa ação diária seja a beneficência, e pronta para intervir caso haja um direcionamento para hierarquizar a recomendação do médico sobre a negativa do paciente; ela não permitirá que comportamentos sejam forçados, que fique bem claro que as motivações do paciente para a recusa têm que ser respeitadas. A prudência dá um passo adiante e com sua habitual fisionomia compenetrada lembra que tomadas de decisão na beira do leito não devem ser fundamentadas em sobreposições de avaliações tecnocientíficas sobre desejos, preferências, objetivos e valores do paciente, a fim de evitar arranhões na dignidade do do paciente. Um advogado, oportunamente, passa para dizer que um simples bandaid não costuma reverter o machucado moral e que um juízo de negligência nunca deixa de rondar o não consentimento por parte do paciente, destacando que escritos e assinaturas são imprescindíveis. O enfermeiro mostra impaciência com a demora na tomada de decisão. O psicólogo constrói várias explicações para o não consentimento com base na condição humana. O assistente social contribui com informações da pessoa do paciente, muitas via familiares, que não foram reveladas diretamente ao médico por certo constrangimento. O representante da informática pensa num método para anexar todo aquele áudio no prontuário do paciente. Um estudante de medicina envia seguidas mensagens para o seu grupo de colegas entusiasmado com a discussão.

O paternalismo fraco ganha coragem, se adianta, esquiva-se de um movimento bloqueador da autonomia que o considera um rebelde que não aceita o exílio para a emergência e insiste em participara na eletividade e resume em poucas palavras que o desejo de ser paternalista numa medida aceitável significa que o médico se responsabiliza pela decisão, que é preciso dedicar mais tempo para o processo de idas-e-vindas, essenciais pois se trata de comunicação humana em momentos de vulnerabilidade, desnível de conhecimento e influências da memória, circunstantes … e do medo. A tolerância, sempre compreensiva, concorda com o paternalismo fraco, que cada um tem direito a ter sua opinião, muito embora não tenha direito a ter seu próprio fato, razão para que o não consentimento por parte do paciente exige a sua afirmação de responsabilidade. A sempre vigilante ética explica que  embora a verdade seja do conhecimento e que o médico conhece mais o conhecimento e portante está mais próximo da veracidade, o valor é do desejo e precisa ser respeitado; ela interrompe abruptamente sua fala ao perceber uma tentativa de entrada do paternalismo forte e, prontamente, o expulsa do recinto com as palavras de ordens: nenhuma coerção, nenhuma proibição.

A beneficência posta-se ao lado da diretriz e afirma a autoridade da mesma, a legitimidade de suas recomendações. A não maleficência toma a palavra e enfatiza as figuras da não indicação e da contra-indicação, situações onde uma não aplicação está alinhada à desnecessidade conceitual ou a peculiaridades individuais que provocam mais mal do que bem. A beneficência insiste que adversidades são o preço para o alcance do benefício. Uma bula entra abruptamente e tenta justificar a ênfase nas adversidades, mas apesar do apoio da autonomia, tem sua voz abafada por um  bate boca entre a beneficência e a não maleficência digno de uma torre de Babel, a primeira tenta se impor como representante da medicina moderna e a segunda como guardiã da imortalidade hipocrática. A autonomia, a prudência e a tolerância mobilizam-se como a turma do deixa-disso.

Adentra um membro  do Comitê de Bioética convocado pelo diretor clínico portando debaixo do braço sua indefectível planilha com um risco vertical ao meio separando as colunas prós e contras. Macaco velho experiente em variadas cumbucas éticas, morais e legais, ele sabe que o melhor conselho é aquele que o solicitante deseja ouvir. Entretanto, está treinado para ser imparcial. Um de seus aprendizados em serviço à beira do leito foi reconhecer que dificilmente ele se vê neutro no conflito, tem suas ideias, pensamentos e concepções sobre o caso em si, mas que não deve pender para um lado em nome da imparcialidade. Ele estimula a interlocução com igualdade de valor entre paciente, médico, prudência, ética, autonomia, paternalismo fraco,  beneficência, não maleficência e advogado e tantos outros.

O membro do Comitê de Bioética como intercessor organiza o encontro dos circunstantes em busca de expansões possíveis no sentido da conciliação de interesses e das limitações a serem respeitadas. Ele divide o encontro em uma série de reencontros cada qual com seu interlocutor específico e esta partição com formatos próprios é fundamental permite a finalização da montagem do quebra-cabeças que dá o panorama do conflito.  Médico e paciente sorrateiramente saem juntos, podendo-se ouvir vamos recomeçar.

Como não pretendo expor um caso real, temos que parar por aqui. Sugiro que cada bioamigo que prestigia o blog prossiga com um ato baseado nas realidades de uma vivência. Aguardo e publico!

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