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611- De olho

Dizem que gerações prévias ensinam gerações futuras. É verdade. Ultimamente, todavia, cresceu o sentido inverso do ensino e aprendizado. Concomitante, reduziu o interesse do jovem pela voz da experiência. Muitos juram que a culpa é da tecnologia, especialmente aquela da informação e da comunicação. Será mesmo? Acredito que sim.

Este tema sobre a vida como sala de aula repercute na beira do leito. Inevitável em relação à vida profissional do médico pela repercussão na saúde. Percebe-se tendência à redução da influência da anamnese e do exame físico nos atendimentos. Para uns, tão somente um apressamento dos finalmente mais eficientes, para outros, um fator de ineficiência pela quebra de elos essenciais da cadeia diagnóstica, terapêutica e preventiva.

Estará em desenvolvimento o ostracismo da medicina clássica como proclamam aos quatro ventos os colegas que entendem que já estamos recepcionando uma nova medicina? A Bioética da Beira do leito preocupa-se com os motivos desta difusão eólica e reforça que o paciente sempre foi e sempre será o ponto de referência da medicina e que análises críticas devem ser emolduradas pela mais adequada integração entre beneficência, não maleficência e direito à liberdade da voz ativa pós-esclarecimento. Respeitando a imprescindibilidade contemporânea da tecnologia, é imoral e anti-ético qualquer pensamento de banimento da anamnese e do exame físico da conexão médico-paciente.  Comprometeria a consecução da excelência.

Cada época tem suas características profissionais articuladas com a excelência. Um dos indutores da excelência é a ambivalência entre o entusiasmo com os métodos e a frustração pelas indisponibilidades e insucessos. A faculdade de medicina é local para abrigar e difundir tais percepções. Fundada em 1808, a Faculdade Nacional de Medicina, conhecida por Praia Vermelha, foi um celeiro de educadores das gerações subsequentes. Usufruí desta qualificação, inclusive, antes mesmo de estudante, beneficiei-me da excelência da estrutura humana no parto – minha mãe terminava a 3a série- e da pediatria.

O professor Cesar Beltrão Pernetta (1906-1993) foi meu pediatra no Rio de Janeiro. Daquelas pessoas para se colocar o convívio no currículo. Os alunos da Faculdade de Medicina da então Universidade do Brasil, na década de 40, ao lado da Praia Vermelha e do Pão de Açúcar, gostavam do seu estilo mestre de ensinar e, os poucos que se tornavam estudantes pais e mães confiavam seus filhos ao seu profissionalismo. Predominava fortemente a tecnologia natural sustentada pelos órgãos dos sentidos bem treinados.  A aplicação da conduta terapêutica era baseada na experiência pessoal e no trabalho nas clínicas acadêmicas. Pernetta fazia seis meses de consultório privado ao ano para atualizar seus livros numa época em que eles eram escritos de dentro para fora, autor no sentido do termo, e não desde o exterior reproduzindo a literatura. Ele procurava ordenar o saber pela vivência clínica a fim de se sentir apto a atualizar suas publicações, ciente da responsabilidade pelo veículo que dominava o ensinamento para os pediatras brasileiros. Sua disciplina de certa forma reproduzia a sabedoria de Confúcio (551 ac-479 ac): O presente resulta do passado e causa o futuro. Alguns anos depois, o grego Hipócrates (460ac-370ac) reconheceu esta sabedoria chinesa. Afinal, diagnóstico alinha-se ao passado, terapêutica ao presente e prevenção ao futuro.

A medicina cresceu com os médicos caçadores-coletores de diagnósticos, mas que diferente dos bandos consumidores que habitavam as florestas, eram produtivos. Eles colecionavam  os dados, pioneiros bancos de dados, resultantes  da anotação detalhada  da clínica dos pacientes em curso da história natural da doença para que os subsequentes achados necroscópicos de cada um deles permitissem iluminar futuros diagnósticos. Os bancos de dados serviram de fonte para a difusão por livros.

Mais recentemente na história da Medicina surgiu o conceito de exame complementar, uma utilidade in vivo, que, evidentemente não se aplicava à complementariedade da necropsia. A anamnese do ouvir, falar, ouvir-se falar e ouvir-se ouvir  e o exame físico pela visão, tato e a audição ganharam aprimoramentos proporcionados pela tecnologia, uma completude diagnóstica que sorrateiramente apodera-se da beira do leito e do acervo da medicina. A minha geração teve o privilégio de testemunhar a metamorfose da medicina ocorrida nas cinco décadas  mais transformadoras da beira do leito. O pediatra Pernetta tinha que lidar com a variedade das chamadas doenças da infância que hoje é tão somente uma orientação sobre o calendário de vacinas. Ele usava a imaginação para alinhar a anamnese e o exame físico com hipóteses diagnósticas, de pneumopatias, por exemplo, hoje mister de imagens realísticas.

Desenvolveu-se na segunda metade do século XX a concepção da superioridade da evidência baseada em pesquisas clínicas. Objetivava reduzir vieses humanos da vivência clínica para a obtenção de respostas a perguntas antigas e novas de interesse na beira do leito. Seus idealizadores temiam as imperfeições da memória, a falta de atenção a detalhes e os perigos da imaginação do médico. Consideraram o cérebro humano com baixa capacidade de processamento de dados clínicos vivenciados sem uma sistematização científica, representando um potencial agente de malefícios clínicos para o paciente.  Tangenciaram uma avaliação depreciativa da vivência profissional.  Níveis e classes de evidências reconhecidas por um passado organizado tornaram-se validados para o futuro e dominaram a prática médica, um esforço em direção a exatidões em âmbito matemático.

Chegou a computação. Rapidamente evidenciou a capacidade para elevar a intimidade com o presente e o poder de uma memória utilíssima para ligar o futuro ao passado- sem desatenções, sem achologias, tudo ao alcance de simples cliques. O médico adquiriu disponibilidades para registros gigantescos com altíssima fidedignidade como fontes de referência para tomadas de decisão diagnóstica, terapêutica e preventiva. As vivências profissionais expandiram-se, ganharam maior globalização e, assim, energizou a inteligência tecnocientífica da medicina.  Facilitou-se a convivência entre a pesquisa científica que faz manipulações em busca de resultados conclusivos com olho numa validação futura e a expansão eletrônica dos bancos de dados como registros do já visto acontecido, um passado atemporal para aplicação imediata, vale dizer, validação pelo tempo já ocorrido.

A Bioética da Beira do leito tem uma visão habitualmente inclusiva. Entende que a expansão tecnológica quer substitutiva, complementar ou suplementar, é bem-vinda para co-habitar o mundo clássico da anamnese, do exame físico e do comprometimento profissional que garante a preservação do caráter humano da conexão médico-paciente. A sinergia confere ganhos de agilidade para aprofundar o domínio da chamada fase 4 de mercado das pesquisas clínicas, onde a medicina assistencial de fato acontece, beneficiando a segurança do paciente. Uma seleção natural apoiada pela tecnologia.

A visão humana binocular é essencial para o reconhecimento da profundidade, contudo, preferimos um só olho aberto para nos concentrarmos num foco. A Bioética da Beira do leito valoriza um contexto de olhar ciclópico para dar harmonia na integração de pontos de vista  entre anamnese/exame físico e tecnologia complementar. Afinal, as clássicas propriedades médicas do olhar clínico e do olhar de relance simbolizam único olho no meio da cabeça atenta e pensante.

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