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606- Caçador-coletor e empreendedor-transformador

Segundo a demografia médica 2018, o Brasil tem cerca de 500 mil médicos, com número crescente de mulheres e jovens e alta desigualdade de distribuição geográfica. A heterogeneidade influencia, diretamente, a presteza do preceito institucional que a saúde é um direito de todos e, indiretamente, o princípio ético fundamental de a coletividade contar com o serviço da medicina.

A complexidade da atuação ética de mais de meia centena de especialidades e áreas de atuação  pode ser simplificada na consideração prática que o médico recolhe matérias-primas – dados e fatos- desde o paciente e produz diagnósticos e desenvolve tratamentos- tudo com o consentimento do paciente. Por mais que o médico invoque patentes clínicas ou científicas para suas descobertas e construções, o proprietário é o paciente, conforme registro oficial em prontuário. São muitas singularidades profissionais que se desdobram na beira do leito.

Uma delas é que o médico superpõe atividades de caçador-coletor e de empreendedor-transformador. Ele necessita empregar conhecimentos e habilidades, que quanto mais diversificados, melhor. Aliás, a constante incorporação de saberes e capacidades representa sobrevivência profissional, uma renovação sem fim dos métodos existentes a sua formatura, cada vez mais acelerada e diversificada.

Uma aquisição pioneira de métodos aconteceu no início do século XIX e gerou imediata exigência dos pacientes. Eles passaram a preferir se consultar com os médicos que tivessem o aparelhinho- o estetoscópio. O primeiro instrumento não natural de conexão entre paciente e médico, apenas num sentido de direção. Duzentos anos depois, o aparelhinho conector- celebridade é o celular, que qual escoteiro, deve estar sempre alerta e pronto para a boa ação do dia.

Há um destaque atualíssimo para a disparada da comunicação. Logo, logo, novidades entusiasmantes são substituídas com pouco tempo de serviço e vão fazer parte do acervo do museu inaugurado com a aposentadoria dos sinais de fumaça. É a disparada como escalada, mas o termo também significa sair de perto correndo. Nos últimos anos, acumulam-se queixas que médicos não se comunicam adequadamente com seus pacientes de modo presencial. Disponibilizam um tempo presencial exíguo e se distanciam. Pacientes não se sentem informados, esclarecidos, ouvidos. Educadores médicos têm se dedicado a apontar a seus discípulos o valor de falar, ouvir, ouvir-se falar (para não dominar o diálogo) e ouvir-se ouvir (para não se desligar do diálogo). Insatisfações no campo da comunicação superam as de natureza tecnocientíficas.

Durante séculos, o médico não podia fazer qualquer comunicação ao paciente, assim como não pode sobre ele – a instituição do sigilo profissional- à distância. Pinturas famosas mostraram o médico sempre ao lado do paciente. Alguém tinha que ir até o médico para solicitar um atendimento domiciliar. Conferências médicas dominaram muitos artigos de Códigos de Ética Médica brasileiros, vários médicos ao entorno de um paciente segundo normas pré-estabelecidas. O evoluir para o atendimento em hospitais reforçou e, inclusive, não pode haver paciente internado sem a responsabilidade de um médico por ele, que passa visita – vis-à-vis.

Graham Bell (1847-1922) entrou no circuito e proporcionou a médico e paciente uma maneira não presencial de comunicação. O telefone fixo tornou-se clássico como símbolo de maior disponibilidade do médico- me dê notícias, qualquer novidade me liga. Mas, disponibilidade à distância tem suas peculiaridades. Num passado não tão remoto, podia-se tirar o telefone do gancho e assim dava sinal de ocupado para quem ligasse. Assisti várias vezes este subterfúgio de médicos para não serem incomodados em horários impróprios.

Surgiu o bip, primeiro sem mensagem que requeria frequentemente um orelhão e fichas telefônicas no bolso para retirar o recado e depois com visor de mensagem. Usava quem queria ou lhe era exigido pelo Serviço. Ampliava-se a conexão na medicina.

Veio a telefonia móvel e, hoje, não passa na cabeça do paciente- ou familiar- que o médico não tenha um celular e mais, que esteja com ele ligado- sempre. Não há o hábito de colocar no modo avião  para não ser incomodado, mas mesmo assim, o médico pode não atender, fazer suas seleções já que o nome de quem chama está na tela. Mas a tecnologia é sábia, mesmo sem se enquadrar, exatamente,  na inteligência artificial. Aprende a superar as manhas do ser humano. A internet e as redes sem fio incorporaram-se à medicina assistencial e acadêmica. Sem acesso, médicos se vêem imobilizados.

Vieram os aplicativos de mensagem. Agora, está lá a mensagem por escrito – áudio também-, documentada, uma real firma reconhecida de autenticidade, com alerta de som, e, importante, que conseguiu de pronto desenvolver um costume de atenção tão imediatista quanto o toque do telefone, o de provocar um incômodo em não responder em prazo curto. Ficou mais difícil fazer a seleção para fingir que não recebeu, até porque criou-se um código de ticagem, dois tiques azuis acusam que a mensagem foi aberta, subentende-se lida. A expectativa da resposta fica criada e a frustração de um não atendimento é sempre alta. Vira coisa pessoal.

Da mão do médico no paciente, temos, então, o médico na palma da mão do paciente 24 h por dia, 7 dias por semana. O interessante é que o aplicativo de mensagem pode até ser maldito da boca para fora pelo médico, que ele não aguenta mais, mas no íntimo ele sabe, e assim se comporta, que a relação médico-paciente tornou-se conexão médico-paciente. A fidelidade do paciente – chamava-se de cliente- está intimamente associada à presteza da atenção do médico ao fluxo de mensagem no aplicativo. Chacrinha (José Abelardo Barbosa de Medeiros, 1917-1988) cursou apenas dois anos da Faculdade de Medicina, mas legou um conselho atualíssimo para o médico que pode ser adaptado como: aquele que não se comunica por aplicativo de mensagem se trumbica profissionalmente.

Assim testemunhei em 51 anos de profissão quatro cenários de relação médico-paciente que foram se direcionando para conexão médico-paciente (que inspirou o título do meu livro sobre bioética: Conexão beira do leito): cenário presencial e cenário de médico e paciente à distância, através do telefone fixo, do telefone celular e do aplicativo de mensagem.

Se alguém quiser chamar o trio de teleconsulta, porque não? Utilizados sem nenhuma regulamentação específica de órgãos de classe, tão somente, atendendo ao bom senso, ao grau de conhecimento sobre o caso e aos artigos do código de ética médica, os médicos desenvolveram seus modos de lidar com o não presencial, não importa se mais ou menos chatos, mais ou menos abusados ou mais ou menos o que cada um entende ser.  Importa que não haja arranhões à honra, à dignidade, ao zelo e à prudência, estes quatro termos magnos do nosso Código de Ética Médica.

Estes métodos  de exercer medicina conectada e colaborativa, com grande chance de representar o humanismo de que se tanto reclama da falta no presencial, são aplicados com ou sem indícios de infração ética na estrita intimidade da relação (conexão) médico-paciente. O médico, apenas ele, é quem deve decidir se deseja arriscar-se ao limbo da ética, o que subentende o profissionalismo que se sustenta na boa formação, nos aperfeiçoamentos de saberes e habilidades e no bom atapetamento de infra-estrutura. Uma observação é que estas situações não apresentam envolvimento direto de business de terceiros, trata-se de uma comunicação de um para o outro e do outro para um, sem intermediários humanos. Recorde-se o Princípio Fundamental XIX co Código de Ética Médica 2018: O médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência.

Eis um história de consulta à distância sem tela ou com tela pequena. Agora, surgem perspectivas de teleconsultas por telas maiores para dar mais presença, presença virtual, evidentemente. Será que o médico analógico está com seus dias contados? Haverá, de fato, uma aceitação inversamente proporcional à ordenação do número do CRM? Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Mas, uma coisa é a extensão de uma consulta já realizada, com certo domínio específico das circunstâncias clínicas, outra coisa é um médico de plantão à disposição de uma população nada conhecida para o que der e vier.  Não faltarão argumentos a favor e contra, ninguém é dono da verdade, nem da cristalina, nem da escamoteada.

A Bioética é rigorosa com uma colcha de retalhos de termos dos Princípios Fundamentais e dos Direitos do Médico constantes do Código de Ética Médica 2018: O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício do qual deverá agir com prudência e de acordo com os ditames de sua consciência. Consciência que não lhe permite esquecer que ele é ao mesmo tempo um caçador-coletor e um empreendedor-transformador.

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Uma descrição evolutiva do ato médico e sua relação com a medicina conectada e colaborativa. Um caminho irreversível que provoca despertares surpreendentes.

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