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605- Níveis de realidades (Parte 2)

A tríade realidade, memória e imaginação tem alta relevância na prática da medicina, inclusive com destaque na influência da anamnese, pois o terceto se intromete na emissão pelo paciente e na  recepção pelo médico.

– Doutor, fiquei 15 dias  sem permissão médica para sair à rua, mas não fiquei em casa.

– Desobedeceu às ordens médicas?

-Não doutor, pelo contrário, fiquei os 15 dias internado no hospital.

Para lidar com a multi dimensão dos níveis de realidade, um Comitê de Bioética requer estabelecer-se como uma plataforma dinâmica, onde, por exemplo, desdobram-se de modo proativo ou reativo tomadas de decisões complexas. As sucessivas idas e vindas proporcionadas pelos necessários pensamentos nômades sobre a gama de realidades entre o marco zero de um caso e o destino final, fundamentam-se, idealmente, em códigos morais (valores e regras), moralidade (relação com as regras e valores), ética (reunião das práticas) e ordenamento jurídico, pretendendo homogeneizar os pedaços de cada embasamento. Em outras palavras, sempre considerando conveniências e inconveniências de juntar A e não-A num T (de terceiro). Não faltam razões, inclusive de ordem histórica, para que os Comitês de Bioética tenham forte compromisso com os ajustes às circunstâncias em questão, alinhado às tradições da beira do leito de sempre procurar conciliações entre antagonismos. Não nos esqueçamos que saúde não é exatamente ausência de doença, o que autoriza o médico a lidar com diversos níveis de realidade impostos pela individualidade dos casos.  

Num contexto de atualidades e potencialidades, é comum que a exposição de conflito encaminhada a um Comitê de Bioética contenha, em simultaneidade, mais de um nível de realidade. A abordagem do confronto oscila dentro de atualidades de momento sobre fatos que podem ser efetivamente constatados – momento atual evolutivo do atendimento – e de potencialidades de momentos que não estão manifestas – ainda ou mesmo nunca estarão, um futuro projetado, calcado na imaginação e na memória. Não infrequente, o Comitê de Bioética está em meio a um duelo entre o temor do paciente de sofrer uma violência segundo sua óptica e o do médico de ser considerado negligente e/ou imprudente. Embate que se dá, inclusive, sob o amplo guarda-chuva da medicina defensiva. Seria bem simples considerar que se o paciente não dá consentimento ao médico que está à disposição, não há infração ética, mas, há outras realidades que atendem pelo nome de hipocondria moral (temor de ser culpado) e de temporada de caça ao erro médico. 

Como todo atendimento médico está em contínua transição quer em evolução natural, quer em evolução sob intervenção tecnocientífica, o Comitê de Bioética irrompe em conflitos num ponto do caminho onde o caso não é mais certa coisa do passado, mas ainda não se tornou determinadas outras coisas. Ou seja, o conflito orbita sobre finalidades possíveis que não estão atingidas, por enquanto. 

Cada partícipe do conflito expressa suas racionalidades e sentimentos pelo decorrer da sequência de momentos e cabe, então, ao Comitê de Bioética conhecer as posições do calidoscópio, como cada um deu a mexidinha que resultou nas suas visões próprias das realidades.

O marco zero, inclusive, não pode desconsiderar que um conflito latente costuma ser pólvora para ulterior explosão do barril, um agravamento que se dá, justamente, quando as contraposições – isso para uma das partes e aquilo para a outra parte- ultrapassam limites sabe lá quais. Verificar as consistências de cada posicionamento e direcionar sempre que possível o isso e o aquilo em confronto para um nem isso nem aquilo,  mas uma terceira composição é missão humana do Comitê de Bioética. O tijolo a tijolo da construção de uma terceira via representa avaliações sobre pertinências e impertinências de cada lado e procura dar origem a um aquilo outro que seja um ajuste  para a melhor receptividade bilateral quanto à atualidade, porque permite reformular as perspectivas sobre o futuro. Pode ser tão somente uma nova mentalização, ou, então, efetivas mudanças de condutas pela nova conscientização sobre a dinâmica do atendimento.

Um Comitê de Bioética tem o dom de ser o encontro que faltava. Um encontro que requer a intensidade de dedicação, um grau de criatividade dentro de limites e, porque não, o regojizo pela  realização de suas potencialidades. Por isso, não basta à saúde de um Comitê de Bioética fazer reuniões presenciais periódicas. Elas são essenciais, não há dúvida, mas, é fundamental continuar a pensar na Bioética nos intervalos. Como disse o estadunidense William James (1842-1910), o primeiro a oferecer um curso de psicologia em seu país, aprende-se a nadar no inverno e a patinar no gelo no verão.    

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