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604- Níveis de realidade (Parte 1)

Duas vidas famosas compartilharam mesma época. Desenvolveram e legaram visões próprias sobre a realidade. Suas interpretações motivadas pelos ofícios indicam que o conceito de realidade admite individualizações. Estamos falando de Pablo Ruiz Picasso (1881-1973) que afirmou: tudo que se possa imaginar é real e de Albert Einstein (1879-1955) que disse: a realidade não passa de uma ilusão que pode ser persistente.

As biografias de ambos são inspiradoras e permitem conjecturar que se médicos fossem, o cientista Einstein desenvolveria a relatividade das realidades da beira do leito e o artista Picasso interessar-se-ia  pela decomposição, fragmentação e geometrização das realidades dos casos clínicos. Um imaginário diálogo entre eles estaria, assim, propenso para um entendimento que a plenitude da prática médica admitiria singularidades de resultados, antes mesmo de acontecer o boom da medicina na segunda metade do século XX.

No emaranhado de espaços do pensamento, ambos desenvolveriam os seus modos de encontro com o presente e as projeções para o futuro, integrando em exercícios de níveis de realidade. Cada um teria o seu olhar clínico. Picasso organizaria o quadro clínico e Einstein exploraria o prognóstico concluindo que depende da velocidade com que a evolução clínica se  movimenta. Integrando com os fundamentos da ética médica atual, o respeito à prudência requer a imaginação citada por Picasso e a memória que faz persistir, como valorizada por Einstein.

Considerando que medicina é uma arte que aplica ciência, a inteireza de condutas éticas acolhe que algo A e algo não-A  que  são contraditórios e, portanto, representam dois níveis de realidade, podem se integrar numa terceira expressão de realidade que apresenta um grau de convivência entre os extremos considerados antagônicos. Resulta de um diálogo entre a ciência e o sentido de vida dado pela cultura e pode ser ilustrado da seguinte maneira: Perante a consideração do uso de determinado fármaco com forte farmacocinética, o nível A de realidade é que a aplicação de determinado método é beneficente da qualidade de vida com base na ciência e o nível de realidade não-A é a chance de adversidades de prejudicar sobremaneira a qualidade de vida. Contudo, o pensamento  médico  de natureza transdisciplinar que leva em consideração não somente o rigor científico, mas também se abre para singularidades de fatos e de palavras, junta os dois níveis de realidade e surge um terceiro nível que admite a convivência – e a prescrição consentida- de A- o benefício- com o não-A- malefício. Pacientes que recusam o medicamento após ler a bula ilustram que tudo que se imagina é real e que a ilusão pode ser persistente.

É um exercício de imaginação e de memória que se faz em torno de atualidades e potencialidades à beira do leito, um trabalho mental que, aliás, ocorre no nosso dia-a-dia. A imaginação possibilita, por exemplo, que você feche os olhos e mentalize a cadeira em que você está sentado ocupada, a seguir, por um colega. Se a lei da física diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, no plano mental, então, é possível. Já a memória relembra a você que sentou na cadeira, como outro colega estava posicionado anteriormente.  Assim, ao mesmo tempo, você e um colega ocupam a mesma cadeira. Um objetivo pode ser, por exemplo, ajustes ergonométricos. No alinhamento com a prudência à beira do leito, imaginação e memória são capazes de ajustar o rigor científico para necessidades do sentido de vida.

Todo bom clínico que eu conheci ao logo de cinco décadas de beira do leito considerava a realidade atual e projetava como seria a nova realidade – mais de uma, inclusive- ao se materializar o efeito da conduta, ou seja, vivenciava mentalmente distintos níveis de realidade ao mesmo tempo, especialmente usando a memória da experiência-  chame consciência profissional competente, se quiser. A surpresa da descoberta do efeito placebo só reforçou a multi dimensão da realidade à beira do leito.

Os diálogos entre a ciência e a cultura, atualidades e potencialidades, sujeitos e objetos no campo da medicina requerem molduras regulatórias para a seleção dos níveis de realidade admissíveis. Dentre elas, destaca-se o modelo artesanal disponibilizado pela Bioética. Pelo  sentido da guarnição, um Comitê de Bioética precisa, pois, saber lidar com as complexidades das infinitas expressões de realidade da beira do leito. Evidentemente, os Comitês não exigem gênios, mas cada membro precisa se empenhar com racionalidades e sensibilidades, estar alinhado com a sua época e desenvolver pseudópodos críticos com o que está à frente do seu tempo, mas já em vias de bater à porta. 

Por isso, um Comitê de Bioética não é um templo de inflexíveis realidades éticas, morais e legais.

                                                                                                                                              (Continua como Parte 2)

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