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601- Rótulos (Parte 2)

SeisPersonagensA designação A clínica é soberana ganhou força ao longo dos últimos séculos para distinguir  o assintomático do sintomático e para diferenciar o portador de exame físico normal do com anormalidade em tempos de escassa disponibilidade de recursos diagnósticos e terapêuticos.

A presença ou a ausência de sintomas e de sinais de alerta desautorizava qualquer sentido de imprudência ou de negligência sobre o feito ou o não feito numa avaliação evolutiva. Por outro lado, o termo achado de exame foi cuidadosamente cunhado para designar certas identificações sem desprestigiar a clínica pela incapacidade de fazer. À medida em que se expandiram os recursos terapêuticos e as noções sobre intervenções preventivas, achado de exame  elevou o status para dado subsidiário de aplicação de conduta – mesmo em assintomáticos- aproximando-se da soberania da clínica.

A atualidade de A clínica é soberana é uma expressão de reforço ao conceito que o conhecimento da clínica é obrigatório, mas, sem ofuscar que não faltam circunstâncias onde exames complementares superam a clínica na efetiva sustentação de diagnósticos e de tratamentos. Por exemplo, o paciente é farmacologicamente aliviado tão somente pela clínica típica que cólica renal, mas não é submetido à litotripsia sem realizar um exame de imagem.

A medicina está cada vez mais complexa, os casos mais cheios de dobras e, assim, necessitados de  serem  desdobrados. Não infrequente, uma simplicidade clínica pode causar uma sensação de incompletude ao médico, que algo lhe passou despercebido.  Assim, balança a plataforma de A clínica é soberana e corre-se para se segurar no corrimão do exame complementar, uma mãozinha da medicina defensiva.

O médico se forma inseguro, atira-se na Residência Médica para ganhar segurança profissional e, ao completá-la, todos os dias, sem exceção, persiste na jornada profissional de adensar a expertise. Idealmente, ele vê despencar o seu número de CRM na ordenação oficial e vê ascender a experiência acumulada, a sua e a coletivizada no Serviço e na literatura, para prospectar dados e fatos por judiciosa seleção de métodos e para bem arquitetar condutas. Nunca é demais repetir o que o tempo – no caso, cerca de 25 séculos- não permitiu esquecer: É fazendo que se aprende a fazer aquilo que se deve aprender a fazer, formulado por Aristóteles (384 ac-322 ac).

Tudo isso ecoa na beira do leito como indubitável imperiosidade para um posicionamento anti-maniqueística (Maniqueu, filósofo do século III) sobre métodos. Cabe a figura da caixa de ferramentas à disposição para escolhas caso a caso. É noção importante para reverberar, inclusive, a cada progresso incorporado à medicina, quando há uma tendência natural à exultação. De fato, o pensamento de Aristóteles embute que a experiência deve provocar a moderação que faz evitar a síndrome do último artigo publicado- agora sim vamos cuidar melhor. A moderação significa a crítica sobre a integração aos excelsos patrimônios da medicina: o acervo do conhecimento e o compromisso com o paciente.

Ao longo do aprendizado em serviço a que se obriga, o bom médico reforça o anti-maniqueísmo pelas sucessivas evidências que benefícios não se desgrudam de potencialidades de adversidades. Também porque, de vez em quando, efeitos colaterais iniciais tornam-se a grande indicação de alguns fármacos, como bem registra a história da farmacologia. O médico decodifica que os meandros da biologia humana ainda têm muita escuridão e que os labirintos dos genes desaconselham qualquer rota de onisciência.

Assim, cada momento dos cuidados com o paciente sofre múltiplas influências, ora é uma resposta biológica peculiar exigente de algum pulo metodológico, ora é um não consentimento pelo paciente que impede a aplicação mais eficiente e determina ajustes espertos, ora é uma dificuldade de infra-estrutura incontornável na ocasião. Até os mais frios algoritmos piram.

Hoje, medicina e inovação são xifópagas, uma se mostra dependente da outra. Um simples retorno das férias passou a exigir do médico algum ajuste de conduta. Atualizar-se tem prazo de validade cada vez mais exíguo e não infrequente inovar vira o avesso do clássico. Uma sobrecarga para a crítica.

Cícero (106ac-43ac) nos garantiu que pensamentos são livres. Os cientistas concordam e da aplicação resultam afortunados pensamentos nômades que sustentam perspectivas de transformações em vários campos da medicina. Livres globais é verdade,  entretanto, sempre sub judice do efeito humano. Missão para a Bioética.

Perante a necessidade de o idealismo em medicina estar em constante equilíbrio com o mundo real da beira do leito, destaca-se a cautela sobre o desconhecimento dos reais efeitos e sobre o longo prazo. Assim, reações preliminares de dedo em joinha não devem representar definitivos entusiasmos de fã clube, e nariz torcido não deve significar anticorpo gênese mental definitiva. Engenharia genética, inteligência artificial, medicina personalizada é trio com perspectivas altamente transformadoras que já fornece sérias preocupações sobre consequências, vale dizer, reforça o imperativo do anti-maniqueísmo, da inconveniência de rótulos indeléveis.

A Bioética contribui para aplicar alguns alertas famosos neste sentido:

                                     Nunca diga desta água não beberei (não servirei)

                        Lembre-se que na natureza nada se ganha, nada se perde, tudo de transforma

                                     Considere que sobre o ombro do gigante vê-se mais longe, mas distancia-se do chão.

Na consideração vaivém de qual método possa ser rotulado de soberano na circunstância do caso, jamais podemos esquecer que, na beira do leito, a conexão médico-paciente é indiscutível soberana no disputado trono da medicina.

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