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579- Advogado

Conexão BLlivroO consentimento do paciente a recomendações do médico é atitude majoritária no ecossistema da beira do leito. O paciente pode até não se sentir exatamente satisfeito por ter que cumprir as orientações, mas entende as razões, se conforma e segue com aderência.

Desdobramentos em direção oposta são, entretanto, possíveis: a interrupção do cumprimento da prescrição ambulatorial e a revogação do consentimento a qualquer momento da internação hospitalar.  Os dois tipos exemplificam que o médico é responsável pela orientação, mas interpretações sobre responsabilidade podem sofrer influências no decorrer na aplicação.

Assim, o consentimento livre e esclarecido que inclui eventual descumprimento ou revogação formal insere-se no direito do paciente à autonomia e alinha-se com participações de responsabilidades pelo paciente em função de escolhas.

Um exemplo recente: uma paciente capaz, 50 anos de idade, com fibrilação atrial crônica e valvopatia mitral recebe orientação do seu médico para suspender o  uso do anticoagulante oral que faz há anos para ser submetida a um ato operatório. Ela se mostrou bem esclarecida sobre a necessidade de aplicação temporária de heparina de baixo molecular via subcutânea para que o procedimento tenha a necessária hemostasia.

No segundo dia do pós-operatório, a paciente recusa-se a prosseguir recebendo a heparina – reclama da picada na barriga-, apesar das explicações do médico sobre não estar ainda protegida pelo reinício da anticoagulação oral. O caso tem um aspecto adicional: um ecocardiograma trans-esofágico realizado por ocasião do diagnóstico da fibrilação atrial revelou a presença de trombo atrial, o que impediu a realização de cardioversão elétrica; após uns meses, a paciente recusou uma orientação de se tentar a cardioversão elétrica da disritmia, pois o trombo poderia ter desaparecido pelo efeito do anticoagulante, e, em decorrência, não houve razão para nova verificação ecocardiográfica sobre o comportamento do trombo.

A paciente só tem um parente que mora em outro país que nunca entrara em contato com o médico e a paciente se mostrava  sempre muito ativa e decidida. No quarto dia de pós-operatório ocorre um acidente vascular cerebral isquêmico comprometendo fala e motricidade. Coincidentemente, o parente chega de viagem para visitar a paciente. Apresenta-se como enfermeiro e após ter recebido as informações sobre a evolução clínica da paciente, faz sérias acusações de imprudência e de negligência ao médico.

A paciente está cognitivamente incapaz e o médico decide não entrar em detalhes com o parente, muito menos lhe mostrar o prontuário da paciente, aliás, pormenorizadamente elaborado, em nome do sigilo profissional. O médico, tarimbado, entende que está com a consciência tranquila sobre os acontecimentos e resolve não mais atender às solicitações do parente sempre hostil e ameaçando contratar um advogado. O parente antes de retornar a sua residência no exterior dá uma procuração a um advogado para acompanhar e tomar as providências que coubessem. O médico recusa-se também a dar informações ao advogado alegando que seria quebra de sigilo porque ele não fora contratado nem pela paciente, nem por um representante indicado.

A visão jurídica pelo advogado Dr. Osvaldo Simonelli com grande experiência em assuntos médicos

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Dr. Osvaldo Simonelli

 

 

 

O caso analisado retrata algumas das facetas interessantes, intrigantes e instigantes concernentes à relação entre médico e paciente.

O primeiro diz respeito aos limites – se é que eles existem – com relação à autonomia do paciente. O caso clínico apresentado não é simples, na medida em que duas recusas apresentadas formaram um quadro de delicada análise, vez que que a recusa quanto ao recebimento da heparina subcutânea, quando ainda não havia proteção medicamentosa suficiente pela anticoagulação oral, lhe trouxe consequências desastrosas, com comprometimento de fala e motricidade após acidente vascular cerebral.

Soma-se a este quadro ainda a presença de trombo atrial, em que houve recusa anterior quanto à realização de uma cardioversão elétrica da disritmia, restando um vácuo quanto à análise do comportamento de tal trombo sob o efeito da anticoagulação.

O Código de Ética Médica – tanto o atual quanto o que entrará em vigor em breve – em que pese ter avançado significativamente no que se relaciona com a autonomia dos pacientes, comparativamente com as normas éticas anteriores, ainda mantém um certo paternalismo quando indica, v.g., no Princípio Fundamental XXI que “No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por ele expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.”

A ressalva final feita na redação do texto, indica que o médico não deve aceitar decisões de seus pacientes, que contrariem, por exemplo, a melhor técnica ou não sejam reconhecidas como cientificamente válidas e, como consequência, o que deve fazer o médico? Abandonar o paciente? Constrangê-lo ao tratamento?

O Código Penal, datado de 1940, dispõe em seu artigo 146, § 3º, I, que não se constitui crime de constrangimento ilegal, “a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.”

Sob o ponto de vista eminentemente penal, não haveria constrangimento ilegal na intervenção médica sem o consentimento do paciente, quando realizada para lhe salvar a vida; entretanto, não se está diante de uma “ausência de consentimento”, mas uma manifestação de dissentimento expressamente manifestado à orientação médica que, conforme narrado, foi completa o suficiente para indicar os riscos.

Assim, o paciente decidiu de forma livre, consciente e ciente dos riscos, ainda que se tratando de procedimentos simples (ambos narrados), mas com potencial para altíssimas consequências, como de fato ocorrido.

Retornando ao regramento ético, o artigo 31 do Código dispõe de forma clara que é vedado ao médico “Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.”, o que entendo seria aplicável ao caso em debate, na medida em que houve o respeito efetivo à autonomia do paciente, dado que não nos parece haver “risco de morte iminente”, mas eventualmente possível, o que foi esclarecido e, ainda assim, não o demoveu da sua convicção.

Quanto à presença do parente, o Código de Ética Médica utiliza-se sempre da expressão “representante legal”, trazendo algumas dificuldades em casos específicos, tais como os ora em debate. A representação legal, tal qual como regulamentada pelo Código Civil, define-se a partir da substituição de uma pessoa por outra, nas exatas situações definidas pela Lei; quando há a representação voluntária, esta se expressa através de uma manifestação de vontade (procuração), não presente no caso em tela.

A simples presença de um “parente” na situação narrada não lhe confere as possibilidades de representatividade estabelecidas pela Lei, como o pai ou a mãe frente ao filho menor – cf. art. 1690 do Código Civil, o tutor ao pupilo – cf. art. 1747, I do Código Civil ou, ainda, o curador para o curatelado – cf. art. 1774 do mencionado códex.

Nesta senda, não nos parece ser razoável a quebra do sigilo profissional médico para quem a Lei não confere poderes, sendo hipótese de ajuizamento de ação própria para que o Juiz, se entender correto, nomeie o parente em questão como curador, ante a condição de incapacidade – talvez temporária – do paciente.

Conclusivamente, podemos indicar que a conduta do profissional foi correta sob o ponto de vista ético-profissional ao respeitar a vontade do paciente e negar acesso aos dados médicos para parente. Destaco apenas que no caso em tela, há um leve indício de uma certa recalcitrância às ordens médicas, na medida em que, em duas oportunidades, o paciente coloca-se contra procedimentos relativamente simples, mas com consequências potencialmente graves, o que ensejaria, talvez, uma avaliação prévia quanto à sua capacidade cognitiva, para que se efetive o compartilhamento das decisões de ordem médica.

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