PUBLICAÇÕES DESDE 2014

572- Bioética seguro da sinceridade na relação médico-paciente

Conexão BLlivroA Bioética vale como uma grande companhia de seguros mútuos, apólices para o médico e para o paciente, emitidas tanto do médico para o paciente quanto do paciente para o médico. Assegurar o quê, exatamente? Dentre várias cláusulas, destaco uma: sinceridade.

Não mentir nem para si nem para o outro é empenho essencial da Bioética da Beira do leito. Evidentemente, há circunstâncias no ecossistema da beira do leito onde poder-se-ia justificar uma omissão ou uma emissão de palavras destituídas da verdade por motivação compassiva, mas é a exceção que comprova a regra. Para complicar, mesmo método pode estar numa situação de verdade de utilidade alinhada com a prudência e o zelo ou de uma mentira de utilidade classificável como obstinação terapêutica.

Uma beira do leito comprometida com a sinceridade  do paciente sobre o que lhe acontece no corpo e na mente e do profissional da saúde sobre dados, intenções, benefícios e malefícios previsíveis é cenário idealizado pela Bioética que se esforça em disponibilizar pontes com tráfego em dois sentidos de direção entre tecnociência e humanismo.

Não é praxe o médico verbalizar ao paciente que espera sinceridade dele. Soaria uma violência, embora possa ser interpretável como um item de uma simples repassada de compromissos na relação médico-paciente, algo como reforçar que sinceridade mútua favorece melhor diagnóstico, melhor conduta, melhor prognóstico. Portanto, que se pense bem antes de se expressar, pois, bastam lapsos de memória e atuações do inconsciente.

Mas, quer dizer, então, que pacientes não são sempre sinceros? É tema delicado, mas, uma resposta justa é que cada ser humano tem muitas razões para não se manifestar de modo exatamente sincero, em vários graus de desvios da verdade, que significa que a possibilidade no paciente não pode nunca ser excluída.

Se fica desagradável a “pessoa física” do médico cobrar sinceridade, uma solução pode ser o reforço do valor da sinceridade pela “pessoa jurídica” da Bioética, mais impessoal, como um comportamento que se espera como tantos outros relacionados em direitos e deveres do paciente na área da saúde.

É desafio a ser enfrentado utilizar fundamentos da Bioética na estruturação de estratégias para conscientizar o paciente a respeito da sua responsabilidade no atendimento. Beneficiaria, inclusive, a capilarização da Bioética na beira do leito, pelo acréscimo de uma frente de reivindicação. O paciente  não somente como receptor, mas também como emissor de Bioética.

Há uma certa naturalidade de apreensão de essências da Bioética determinada pelo ganho de cronicidade de doenças, pela maior expectativa de vida, afora o maior acesso à informação não diretamente do seu médico. É mudança  que levou ao maior entendimento do paciente sobre sua(s) enfermidade(s). O paciente passou a saber mais, nas últimas décadas, sobre utilidade de métodos, sobre eficácia dos mesmos, suas adversidades, como conciliar desejos, valores, objetivos, possibilidades e direitos na saúde. Cresceu, portanto, uma forma contemporânea de pensamento do paciente em sintonia com fundamentos da Bioética. Fez-se mais clareza sobre a segurança proporcionada pela sinceridade.

O paciente, todavia, ignora que a Bioética está ativa quando ocorrem ajustes de conduta a sua individualidade- clínica ou comportamental-, que eles representam movimentos de alfaiate com agulha e linha apoiados pela Bioética e não tão somente uma seleção ligeira dentre o prêt-à-porter existente. Esta distinção para o leigo não é fácil, evidentemente, mas, não parece ser uma linha de pretensão impossível.

O que acontece é que a custódia dos princípios da Bioética está com o médico que se preocupa com a responsabilidade de planejar benefícios (beneficência), evitar malefícios (não maleficência) e assegurar o direito ao exercício do consentimento (autonomia). É o médico quem organiza os esclarecimentos e, é de como ele transmite  as informações, as seleciona, as verbaliza e se dispõe ao diálogo que surgem as dúvidas do paciente que, então, poderiam se encaixar numa organização mental distribuída em benefícios, malefícios, decisão sobre consentir ou não.

A Bioética da Beira do leito entende que desenvolver canais para o paciente compreender o sentido da Bioética para a qualidade do atendimento, para definir limites e expansões dos encontros com médico, medicina, instituição de saúde e sistema de saúde,  contribui para promover o equilíbrio entre exigências e possibilidades, assim elevando a qualidade do atendimento no ecossistema da beira do leito.

A experiência em Comité de Bioética é clara: emite-se um parecer sobre um conflito médico-paciente que é dominado pelo posicionamento profissional- eventualmente com a participação de um representante geral de paciente. A situação fica mais ponderada quando um representante do Comité de Bioética vai ao local do conflito e tem a oportunidade de lidar diretamente com os envolvidos, até mesmo, filtrar a sinceridade. Sempre haverá aquela sincera palavra, aquela sincera frase, aquela sincera justificativa-surpresa que “faz parar para (re)pensar”.

Vem à mente a questão de quem veio primeiro o ovo ou a galinha, transformado em quem surgiu antes, o médico ou o paciente? Considerando que foi o paciente, ele, então, provocou o aparecimento do médico.  Ou será que foi o médico que abriu um ambulatório e ficou esperando chegar um paciente? Mutatis mutandi, se o paciente passa a cogitar da Bioética, então, não somente, ele se qualifica como ponto de referência para tomada de decisões, como também, provoca a prática da Bioética pelo médico. Simples assim, complexo, assim.

Obviamente, não cabe um ambulatório ou uma enfermaria de Bioética, mas a capilarização da Bioética exige que o paciente saiba que naquele ambulatório ou enfermaria de determinada especialidade ele deverá contribuir e usufruir também para o exercício da Bioética, por exemplo, pelo seguro de sinceridade em prol da melhor integração entre tecnociência e humanismo.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES