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571- Abadiânia, Goiás, Brasil, Terra (Parte 2)

Abadiania
Crédito: http://www.goiasturismo.go.gov.br/abadiania/

Conexão BLlivroRelaciono abaixo cinco itens da arquitetura de escolhas do paciente relacionados ao fenômeno Abadiânia que nem sempre são assimilados em proporção real nas Faculdades e incluem-se no interesse da Bioética:

1- Turismo de saúde– O deslocamento geográfico em busca de atendimento decorre, habitualmente, da combinação da fama de excelência de prestação de serviço e da visão de adequação de custos. Em geral, há uma combinação de especialidade e clínicas/hospitais. O cirurgião plástico Ivo Pitanguy (1923-2016) notabilizou-se por este turismo no quesito fama de excelência. Municípios organizam caravanas de pacientes para clínicas-referência em função do quesito recursos. Certos hospitais de ponta da atualidade estão frequentemente citados na mídia como destino voluntário de pacientes de outros estados brasileiros, enquadrando-se num certificado de qualidade. Recentemente, inaugurou-se a procura por centros de suicídio assistido, como na Europa, na falta de autorização legal no país onde se desejaria morrer. A decisão pela viagem implica numa apreciação de vantagens que envolve os princípios da beneficência e da autonomia. Nas décadas de 70-80 do século passado testemunhamos um movimento de redução do turismo de saúde no campo da cardiologia/cirurgia cardiovascular, quando colegas de vários estados do Brasil – inclusive de outros países- realizavam a especialização no InCor e retornavam a suas origens, criando serviços qualificados que revertiam a necessidade do deslocamento geográfico.  É de se supor que os embaralhamentos de questões sobre a saúde e arranjos de infra-estrutura do turismo de saúde possam criar um universo paralelo de serviços sujeito a conflitos de interesse e ganhos secundários que ou domina ou é dominado com evidentes implicações éticas, morais e legais.

2- Consentimento- O médico precisa, formalmente, obter o consentimento do paciente para aplicar um procedimento. Hoje é inescapável, dispensado tão somente em emergências. O médico não tem como se expandir fora do compromisso firmado com o paciente sobre os limites da atuação- mais amplos, mais estreitos-, sob risco de estar cometendo uma violência. Há, pois, uma situação de confiança na relação médico-paciente. A confiança do paciente no profissional de saúde/instituição de saúde sobre o poder de resolução das necessidades facilita a manifestação afirmativa de consentimento e pode vir a dar dispensa à obrigação de receber maiores esclarecimentos – “… doutor, o que o senhor resolver, está bom para mim…”. A desobrigação da clareza na tradução profissional da aplicação para o leigo parece se reforçar na escuridão do desespero (não espero mais)  e do niilismo (contra-obstinação). O paciente se exime de obter maiores explicações sobre prós e contras, ignora qualquer sentido de bula, pois, em busca de alguma luz, tudo se passa como se não mais houvesse contras a serem acrescentados às circunstâncias desesperadoras e insolúveis- a medicina já contou com o termo terapêutica heroica. Fora das formalidades imobilizadoras da medicina, a obtenção de um procedimento pretensamente benéfico fica liberto da sustentação por evidências e, assim, caem quaisquer amarras impeditivas para dispensar o consentimento- na verdade substituição por um consentimento tácito- para o que possa se sobrepor à própria vontade, expectativa de alguma inflexão alvissareira a partir do imaginado. Considerando a Bioética, uma anestesia na autonomia mediadora-reflexiva que abre caminho para intenções de manipulação.

3- Potencial de adversidade- Qualquer método aplicável na saúde tem o potencial de provocar adversidades físicas ou emocionais. A bula dissocia o médico do fármaco, ou seja, há a intenção beneficente do médico, e há, também, efeitos indesejados pela atuação do sal. O nível de confiança do paciente na orientação do profissional restringe esta dissociação por reduzir a ideia de adversidade, o que acresce o efeito placebo à aplicação. Fora da medicina, métodos tornam-se classificáveis por analogia como IA, não pela fase 3 de pesquisa clínica, mas, direta e constantemente reafirmados pela chamada fase de mercado. Aliás, médicos são habituais mensageiros de má notícia, somente boa notícia envolve alternativas à medicina, quem sabe, um forte critério de inclusão para o agrado pela sociedade. Pode ser uma forma de amenizar o sofrimento- conotação de paliação- ter a sensação de retorno ao útero, nada em cunho ativo, tudo recebido passivamente, como resultado de uma mobilização de energias psíquicas em prol da vida por um poder acolhedor que ao mesmo tempo não se pode comprovar, mas não se pode refutar. Negar adversidades quando se mexe com o corpo humano pode ser visto como uma forma de onipotência de ambas as partes, do emissor e do receptor, o que, evidentemente, não cabe no médico contemporâneo e não deve caber no paciente. A sensação de onipotência traz a lógica da imunidade a críticas – à autoridade e a si próprio- a respeito da submissão incondicional a um comportamento profissional que soa como fruto de um destino conferido por poderes superiores ao que possa ser compreendido na vida terrena.  Uma atuação sobre a saúde deste porte resulta sem o poder moderador de códigos e leis, o que deixa o médico inferiorizado frente a um autoritarismo que se vale da dúvida.

4- Evidências– Evidência é interpretação de resultado. A Medicina baseada em evidências valoriza a dimensão de efeito e a probabilidade de certeza de métodos a fim de considerar a utilidade e eficácia. Pesquisas, metanálises e registros embasam a eticidade de recomendações, fundamentam normatizações, razão pela qual diretrizes clínicas são orientações atualizadas e sujeitas a atuações de ajustes em função de individualidades. Pacientes, todavia,  podem se recusar a compartilhar orientações validadas pela medicina (não consentimento) e, inclusive, optar por conta própria por métodos cujos resultados não passaram pelos filtros reconhecidos pelo mundo científico para atestar real utilidade e nível de eficácia. Assim, o poder de atração de supostos benefícios – meditação, transmissão de energia, água-  está condicionado a formas próprias de interpretação de anúncios de resultados por variadas fontes de informação.

5- Espiritualidade– A tecnociência está no ápice do poder da medicina, não há como pensar diferente. Contudo, há outros processos que não podem ser ignorados, como aspectos ligados à espiritualidade, cada um tem suas razões para os valorizar. Há a crença que faz acreditar que o sucesso estará por vir e há a fé, quando então, a pessoa visualiza o benefício já concretizado. Num ponto além da visão de realização está a superstição. Hipócrates (460 ac-370 ac) dissociou a medicina dos desuses e cuidou para que a tradição da medicina não garanta resultados. O médico compromete-se com o empenho, vale dizer, alinha-se a um credo na medicina, mas não à fé que já vê o sucesso desabrochando. Pacientes podem até reconhecer o afinco profissional, mas a sociedade cada vez mais está informada sobre pluralidade de panoramas de melhores resultados e, assim,  muitos, até de modo não excludente com a medicina, decidem por caminhos norteados pela fé em busca da desejável xifopagia  empenho-resultado. Comportamento onde o hipocrático se bem não podemos fazer, pelo menos que não façamos mal transforma-se em  há um bem que podemos receber, nenhum mal que possa nos fazer.

Tive um professor na Faculdade muito conceituado no meio acadêmico e na sociedade que, à época da medicina dita liberal e praticamente isenta de possibilidade de denúncias por suspeita de má-prática, repetia a seguinte lição baseada em sua experiência profissional: o bom médico pela medicina vigente é uma coisa linear, mas para o paciente o conceito está cheio de contorções; o bom médico é uma boa medicina que tempera suas orientações com otimismo, apesar de saber do potencial de não dar certo; o sucesso na carreira não pode dispensar algo como 10% do curandeiro de antigamente, proporção que não é enganar o paciente, é cooperar com efeitos pouco conhecidos da mente humana, que podem ser incluídos como efeito placebo e que, caso contrário vira efeito nocebo. 

A Bioética da Beira do leito não é muito amigável de extremos, excessos normativos ou ausência de regras. A complexidade da atuação da medicina sobre a vida implica na pertinência de vários níveis de realidade. O médico tem o dever de enxergar o que está acontecendo para planejar e tomar decisões. O paciente, por sua vez, pode fechar os olhos, e imaginar-se em outros cenários, por exemplo, livre da enfermidade por efeito de algum método que se possa desejar, acreditar e receber.

A física quântica mudou o conceito da lógica clássica do terceiro excluído ao mostrar que A e não-A podem constituir um terceiro termo chamado de T (lógica do terceiro incluído). Algo aparentemente contraditório numa visão geral pode ter recortes associativos.

A beira do leito é sala de aula essencial para o ser médico conforme a tradição. Entretanto, qualquer cenário frequentado por paciente tem valor pedagógico para o estar médico conforme a época. Como dito pelo escritor irlandês James Augustin Joyce (1882-1941):  Equívocos são portais de descobertas. Descobertas -portanto realidades- mesmo se taxadas de equívocos de acordo com concepções próprias são uma forma de evidência – têm dimensão de efeito e probabilidade de certeza.  Dentro da concepção de liberdade com responsabilidade, a Bioética da Beira do leito aprecia o médico baseado em evidências- que se porta ético baseado em (multidimensionais) evidências!

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