PUBLICAÇÕES DESDE 2014

554- Bioética intercessora entre o poder da Medicina e a terminalidade da vida (parte 7)

Conexão BLlivroO estadunidense Van Rensselaer Potter (1911-2001), considerado o Pai da Bioética, muito embora o termo tenha sido cunhado pelo teólogo alemão Paul Max Fritz Jahr (1895- 1953) em 1927, percebeu que o humanismo estava em injustificável rota de colisão com o justificável entusiamo pela tecnologia prevista para alavancar o benefício em Medicina.  Assim, partículas da imagem concebida de destruição do humanismo incorporaram-se ao DNA da Bioética- qualquer que seja seu pai- e formam uma fina proteção moral a respeito de tudo que a roda viva da tecnociência energizada pelo próprio homem possa significar de danoso ao ser humano ao longo do tempo. Homenageando outro estadunidense. o escritor Ralph Waldo Emerson (1803-1882): todo doce tem seu amargo, todo bem tem seu mal. O  simbolismo desta expressão literária se incorpora aos princípios da Beneficência e da Não maleficência e, evidentemente, impacta no humanismo que se deseja para a beira do leito.

Continuo com “recordar é viver… e reviver” lembrando que nossos colegas antigos – dos tempos em que não era necessário usar carimbo com nome e número do CRM – anotavam os sintomas (com humanismo), aguardavam a morte do paciente (com humanismo), faziam a necropsia (sem consentimento) e descreviam novas doenças (com exaltação humana). Guardadas as devidas proporções, um feedback análogo entre sabedoria e saber reproduz-se para o manejo ético, moral e legal de obscuridades de atitudes na beira do leito contemporânea. A Bioética da Beira do leito coopera na realização de “necropsias” de atitudes a respeito do anotado. Adensa-se, desta forma, a memória do humanismo para subsidiar subsequentes tomadas de decisão, certamente em tintas mais fortes e cores mais vivas do que as usadas nas pinturas antigas.

Um corpo de interrogação a ser dissecado é a utilidade que passa a ser futilidade em determinado caso. É situação que se encaixa nos níveis superiores da calibragem da sabedoria: toda utilidade carrega algum grau de inutilidade e toda inutilidade carrega algum grau de utilidade. Assim, encontros e reencontros na beira do leito admitem ares de provisório nos planos terapêuticos. A utilidade de hoje poderá ser o inútil de amanhã, o mesmo no vice-versa. Expansões e limitações, expectativas e frustrações, consensos e dissensos, dúvidas legítimas e posturas desviantes obrigam a sucessivas reavaliações. Em meio ao manejo complexo da tecnociência validada, o paciente tem o direito de julgar por si e como puder  sobre utilidade e inutilidade. Em tempo, o termo fútil é um sinônimo de inútil com um valor agregado no campo da ortotanásia.

O desejo humano maior é continuar vivendo. A prudência é seu guarda-costas. Desejos provocam movimentos e tornam-se vontades pontuais. Pelas ações, portanto, temos, agora, a vontade  humana de continuar vivendo. Cada percurso liga-se à esperança da obtenção e pode dar um salto para um status de fé, ou seja, já se percebe o futuro como real. É o humano “vai ficar bom” que já presencia o resultado, lembrando que a Medicina não pode o prometer. Infelizmente, desejos na beira do leito são xifópagas de ilusões. Certamente, o  estadista britânico Benjamin Disraeli (1804-1881) revive no desejo do paciente que recebe má notícia sobre prognóstico. Ele anseia para que “… há três tipos de mentira, a simples mentira, a maldita mentira  e as estatísticas …” seja uma verdade no seu caso. Ironias à parte, estatísticas atuais qualificadas são terríveis ao sustentarem que desejos não mudam verdades. Mas fazem utilidades tornarem-se aplicações inúteis.

Alguém pode criticar certos tangenciamentos da verdade por motivação compassiva, alegando que Medicina não permite ilusões. Elas são antítese de evidências. Concordo. Mas, sempre tem um mas, rebato citando a Natureza e lembrando que tudo nela tem um propósito. Então, a Natureza ensina que há ilusões verdadeiras que nos guiam corretamente. Mentalize-se passando um dia inteiro na praia. Você pode negar que o sol “nasceu” no oriente, foi se deslocando e  “se pôs” no ocidente? Não foi ilusão de óptica. Todos assim vêem e se  guiam sem dar a a mínima bola para o astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) e sua teoria heliocêntrica. Certo que a verdade pela ciência não é o que deveria ser, mas o que é, de fato, por exemplo, junte dois inflamáveis, hidrogênio e oxigênio, na proporção certa (H2O) e apague o fogo. Será que o Código de Ética Médica vigente não aconselha a manter o paciente numa ilusão por flexibilidade ética compassiva  quando dispõe no Art. 34 que é vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal? No caso, haveria, inclusive, possibilidade de atrito com a ética da responsabilidade, aquela que nos responsabiliza não somente pela intenção, mas também pela consequência que pode ser prevista.

Em suma, a terminalidade da vida articulada com o poder da Medicina produz vários pedaços heterogêneos racionais, emocionais, técnicos, científicos e humanos. É gratificante perceber que a Bioética da Beira do leito pode cooperar para reduzir a fragmentação ao que é moralmente possível pela diversidade da condição humana. Funcionaria como um liquidificador ético que produz homogeneizados para pavimentar a ponte entre dignidade humana e terminalidade da vida.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES