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551- Bioética intercessora entre o poder da Medicina e a terminalidade da vida (parte 4)

A beira do leito como ambiente emissor-receptor dos saberes, adaptando ideias de Michel Foucault (1926-1984), gera o feedback poder-saber cada vez mais transdisciplinar e multiprofissional, indispensável para (bem) saber e poder cuidar de pacientes. Lembrando Aristóteles (384 ac-322 ac): O que é preciso ter aprendido para fazer, é  fazendo que se aprende.

A retroalimentação faz-se por formas e campos de atuação que têm uma linha de frente assistencial com sua tradição e suas novidades validadas e uma retaguarda de pesquisa clínica regulamentada. “Bumerangues tecnocientíficos” partem da beira do leito como dúvidas/sugestões clínicas e a ela retornam como evidências científicas aplicáveis. Ao mesmo tempo em que cresce a movimentação destes bumerangues na terminalidade de vida, “viscosidades humanas” conjugadas ao não consentimento prejudicam a fluidez do aproveitamento.

É essencial reconhecer no momento ético atual a hierarquização da manifestação do consentimento do paciente na aplicação do  princípio da  autonomia.  O  binômio autonomia-consentimento tornou-se direito maior do paciente “emancipado” na beira do leito contemporânea. É incorporação humana do alvo de toda a atenção do médico na soberania da beira do leito.

Deve-se apreciar uma finalidade integrativa. O  binômio autonomia-consentimento faz parte do processo de conhecer o paciente. Ele tem equivalências com a anamnese, com os exames e com o raciocínio clínico. Sem o consentimento, o significado de máxima completude possível da Medicina perde elementos individualizados de humanismo.

A paixão pela forma da Medicina da época construiu a máxima  A Clínica é Soberana.  A soberania dos governantes foi ajustada ao Poder da Medicina. O progresso da tecnociência e dos relacionamentos interpessoais no ecossistema da beira do leito foi reformando e aproximando para a concepção geral  que soberania só vale em conjunto. Assim, qualquer consideração de soberania deve integrar “soberanias”, no caso da Medicina, a clínica, a da complementaridade (com evidente domínio atual da imagem) e a do paciente.

Por isso, o caminho do processo de tomada de decisão na beira do leito é idealmente palmilhado pelo devotamento do médico à ciência e à técnica e com aplicação influenciada por desejos, preferências, objetivos e valores do paciente. A Bioética da Beira do leito contribui para uma conscientização acerca do direito ao não consentimento pelo paciente – que já está definitivamente integrado ao ecossistema da beira do leito-, orientando que a negativa não ofende a fé de ofício.

Ademais, a Bioética da Beira do leito faz ver que a incorporação do não consentimento não deve colidir com tipos ideais de paciente que costumam habitar o imaginário do médico, principalmente do jovem profissional. A atenção ao não consentimento pelo médico é inspiração para a adequação das condutas ao humanismo, algo como fazer nascer uma ordem da desordem. ´

Por isso, o não consentimento pelo paciente que ainda pode ser recebido como provisório deve motivar atitudes de  paternalismo fraco pelo médico. Ele representa identificação por heteronomia com  a dignidade da pessoa humana,  uma reação de boa intenção para persistir nos esclarecimentos sobre a beneficência em “dose sensata”, vale dizer sem proibições e coerções. Ademais, permite entender mais de perto os valores do paciente que sustentaram o não consentimento.

O não consentimento tem a capacidade de ativar no médico de fato interessado pelo melhor para o paciente a consciência do que o que o psicanalista alemão Erich Fromm (1900-1980) nomeou como Narcisismo benigno. Refere-se à compensação das deficiências instintivas pelo ser humano em relação aos animais que possibilita uma autoimagem favorável da nossa capacidade de realizar o ofício, de maneira não supervalorizada e reduzida ao bastante para ser socialmente aceito.

O complexo de vira-latas -baixa autoestima- do dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues (1912-1980) pode ser considerado o seu avesso. A Bioética da Beira do leito entende que a adjetivação de benignidade legitima o médico insistir  – sem proibições  e sem coerções, repito- pelo consentimento do paciente. Insere-se num profissionalismo que deseja  respeitar as realidades do paciente, mas entende que certos fatores da negativa podem ser contornados sem nenhuma violência moral.

Por outro lado, os limites impostos pela conjugação não consentimento/paternalismo fraco facilitam conscientizar o médico que “faz Medicina” com paixão que a Medicina não é sua propriedade (seria, então, um narcisismo maligno, uma moldura rígida na qual o paciente precisaria se enquadrar).

Nesta linha de reação de um médico que se sente profissionalmente preparado para orientar condutas  diante de  objeções do paciente, podemos aplicar o conceito de fases ontológicas conforme o psicólogo estadunidense Rollo May (1909-1994).

O médico que se sente confiante para chegar à beira do leito vale-se da chamada autoafirmação, que provê significação pessoal e profissional e autoestima- sinto-me competente, tenho valor para exercer a minha profissão!

Todavia, quando se depara com o núcleo de realidade representado pelo não consentimento, criam-se condições para a elevação do sentido de agente do poder da Medicina. O médico, então, “sobe um degrau ontológico” na expressão de autoridade. Atinge a fase do chamado auto reconhecimento pelo qual o poder fica mais conscientemente ativado. A verbalização é  do tipo “senhor (a) paciente, preste atenção que estou eu aqui ao seu lado com meus saberes para suprir suas necessidades de saúde”. Acompanha um carregamento da criatividade pretendendo tecer caminhos para fazer acontecer o consentimento.

Não enxergar racionalidade na negativa do paciente provoca um impacto que pode ser forte a ponto de ser sentido como perda do comando. Há o risco da prática de um dano moral porque o  médico não gosta de fazer de conta que está cuidando do paciente por um presencial inativo, fica perturbado, cria-se um clima de rivalidade. Ele não é treinado para permanecer na condição de simples espectador, ou, até mesmo, prescritor do que não concorda e por isso, alguns sinais de volúpia pela aplicação da recomendação podem ser observados. Todavia, o paciente precisa continuar a existir como… paciente!

Caso o paciente persista firme na negativa, a tensão profissional tende a subir e pode atingir o degrau  seguinte de poder ontológico, chamado de agressividade. Na beira do leito, a pretensão tradicional é que  se manifeste na forma construtiva. O médico vai mais fundo no objetivo de provocar uma reestruturação no processo de consentimento. Ele ingressa mais decididamente no território da vontade do paciente. Significações pessoais do paciente- o alvo de toda a atenção do médico- podem, contudo, resultar agredidas, um aspecto negativo da agressividade. A Bioética da beira do leito pode ser útil para promover treinamentos sobre doses de agressividade e fazer reverberar a advertência na interface com a tolerância: não é porque o médico aprendeu a manejar um martelo (leia-se método) que tem que enxergar todo paciente como um prego.

Num degrau de tensão mais alto ainda, o nível de poder ontológico alcança o máximo, chamado de violência. A denominação assusta, mas, na verdade ela carece da intencionalidade do mal ao paciente por parte do médico.  Atitudes mais impositivas no afã de contornar as complexidades do não consentimento  pela aplicação do que julga o bem para o paciente – “o senhor (a) tem que fazer, preciso seguir o protocolo da hipótese diagnóstica”- podem desencadear efeitos morais adversos. Estende-se um varal propício para pendurar  denúncias sobre negação de direitos por afrontas a preceitos éticos e legais.

Médicos cujas consciências éticas são indiscutíveis justificam incursões “alguns centímetros além-fronteiras” em nome da responsabilidade com os deveres profissionais. Podem até reconhecer uma “forçada de barra”, mas juram inexistir nem conflitos de interesse, nem ganhos secundários.

Conta muito para evitar um “duelo pela honra” provocado pela sensação de desmoralização profissional abster-se  de acionar o botão da ativação narcísica. Nem sempre é fácil pelas movimentações provocadas pela grande “minhoca” atual na mente do médico – o receio de vir a ser alvo de acusações de imprudência e de negligência por não ter feito o não consentido.

Por incrível que possa parecer, uma  consulta ao Código de Ética Médica vigente “atrapalha” chegar a uma tomada de decisão. Bioamigo, preste atenção à sequência, sendo que para melhor compreensão substituí o caput  É vedado ao médico pelo afirmativo É esperado do médico: Art. 31: respeitar o direito do paciente de decidir livremente… Art. 32:  usar todos os meios disponíveis… em favor do paciente.

A sociedade em geral tornou-se convicta que um Sim é Sim! e um Não é Não! . Deve funcionar de modo análogo na beira do leito.  Por outro lado, dizer sim ao médico não é um imperativo categórico para o paciente. Mas, o estudante/residente de Medicina é condicionado a esperar afirmativas do paciente. O contra poder verbalizado pelo não consentimento tem o potencial de fazer o médico “ficar fora de si”. É um dos tons cinzentos desta “reação ética” à exclusão. Não creio que cheguem a 50 tons de cinza!

O recomendado ao paciente sofre múltiplas influências no processo de consentimento no ecossistema da beira do leito.  Pela complexidade, limites entre utilidade e futilidade na prescrição terapêutica são habitualmente peculiares na terminalidade da vida.

Uma simples infusão venosa de soro glicosado em nome da manutenção do estado de hidratação corpórea a poucas horas da morte pode ganhar um rótulo tanto de útil quanto de inútil, confrontando médico prescritor e paciente capaz e refratário a um suporte vital pré-morte iminente.

Salvaguardas a distorções de interpretação – como uma negligência, por exemplo- exigem constante aprimoramento dos pontos de referência sobre serventia dos meios diagnósticos, terapêuticos e preventivos na terminalidade da vida. Até que ponto interessa conhecer mais uma verdade, mais uma certeza? A aplicação do niilismo -apenas observação cuidadosa e definição de nada a fazer- não é exatamente uma passividade na  iminência da morte, é uma mudança ativa do racional até então empregado no combate à doença.

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