Participei, recentemente, de um Painel no XVI Congresso da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde. Entendi que fui convidado para expor aspectos do sigilo profissional em Medicina de interesse da Proteção de dados pessoais e do Marco Civil da Internet no Brasil. Dei ênfase ao potencial de contraposição entre o desejo de acolhimento ao paciente e o máximo respeito ao sigilo profissional. Considerei estes dois atributos do profissionalismo sob a crescente influência heteronômica observada na beira do leito contemporânea brasileira. Destaquei a força clínica das evidências contida em diretrizes clínicas e a potência comunicativa da disponibilidade digital na composição da alta hierarquia dos impactos transformadores contemporâneos do exercício profissional. A mensagem final foi sobre o valor da judiciosa seleção da emissão de respostas do médico ao paciente e do comedimento de iniciativas via mídias sociais como fator de preservação do sigilo profissional. De modo geral, pretendi captar o sentido de nuvem como expressão da computação em servidores disponíveis na Internet e alinhar o “bom ou o mau tempo ético” da conexão médico-paciente a uma questão de “cirrus” ou “cumulus” formados pelo próprio médico.
Perante a platéia multiprofissional numerosa e atenta, endossei o ponto de vista que a beira do leito renova-se positivamente com novas interfaces por inclusões tecnológicas no campo da informática. São revitalizações que ampliam a multitarefa atávica da beira do leito. Ao mesmo tempo, assinalei que todo método atuante, seja lá de que natureza for, causa algum tipo de dano ao paciente – e ipso facto ressoa no médico-. Em razão disto, torna-se imperioso que a revolução digital de emissão, recepção e armazenamento de informações sofra ajustes éticos e legais em prol da convivência da tradição com o referido progresso. Zonas de conforto nos cenários de continuidade do exercício da Medicina são metas tão perseguidas quanto efêmeras ao serem, porventura, alcançadas.
Códigos, normas e leis de interesse da Medicina estão sempre em recomeços em função de giros de pensamentos sobre direitos e deveres a reboque do mundo real de confrontos entre benefícios e adversidades no ecossistema da beira do leito. Aconteceram quando houve a introdução do estetoscópio (responsabilidade pela disponibilidade de métodos fabricados), radiologia (cautela com danos) e transplante de órgãos (conceito de morte cerebral). Não seria diferente com a incorporação em avalanche da internet, computação e mídias sociais.
Como nunca me afastei do ecossistema da beira do leito desde a graduação, sempre uma beira do leito de natureza acadêmica que preserva de reducionismos, me vi parte atuante da sua informatização. Lembro-me do primeiro computador instalado no InCor para uso coletivo. Ele foi posto num local isolado e somente poucos se aventuraram a testar a usabilidade- fui um dos pioneiros, cooptado pelo fascínio da nova forma de expressão. Aos poucos, a máquina desbravadora foi reconhecida pelos colegas como instrumento útil para agilizar o tratamento de informações alinhadas com o objetivo de bem atender às necessidades de saúde do paciente. O tal do sistema vingou e transformou irreversivelmente a informação no ambiente hospitalar.
Vivemos um momento de ansiedade com muitas dúvidas e tentativas de explicações acerca de uma tremenda transformação da Medicina -inclusão na beira do leito de termos como Medicina de precisão, computação avançada, big data, robotização, inteligência artificial. Uma imagem fantasiosa do paciente entrar numa máquina e sair “pronto” no diagnóstico completo, prescrição terapêutica, maximização do prognóstico favorável e alertas preventivos serve de pano de fundo para anúncios de definhamento – morte mesmo- da propedêutica física guiada pela inteligência natural e exaltações que robustecem a parafernália ligada à inteligência artificial.
Pensamentos originalmente relacionados à ficção científica, antecipações do futuro sobre o poder das máquinas que já estão aqui e agora, sugerem que se deixe de lutar pelo passado tradicional da Medicina, pois as armas serão obsoletas. É ideia impossível para quem aprendeu o inestimável valor das distâncias íntima (15 cm a 45 cm) e pessoal (45 cm a 75 cm) da interação humana no ecossistema da beira do leito e as entendeu como ocupação para uma vida profissional inteira.
A intimidade da beira do leito assim como exige o sigilo profissional referente ao paciente, requer a transparência sobre os métodos utilizados. Neste contexto, a Bioética da Beira do leito é fórum disposto a uma permanente reavaliação do progresso tecnológico tendo como ponto de referência os métodos antigos fundamentais. Entre ideias conflitantes de acelerações e de retrocessos, eclodem preocupações como a coisificação do paciente pelo tecnicismo. Ver o outro como não-pessoa perturba a reciprocidade que caracteriza o exercício ético da Medicina. Exemplo da inquietude com uma desconexão médico-paciente porque afastada da pessoalidade é o quanto a ascensão do laudo de exames da condição de complemento para determinante principal de condutas afasta-se das boas práticas. Recorde-se que é direito III do médico apontar falhas em normas, contratos e práticas internas das instituições em que trabalhe quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais a si mesmo, ao paciente ou a terceiros (Código de Ética Médica vigente). É tema onda nem fixações nostálgicas, nem entusiasmos fantasiosos, qualificam o passado ou o futuro. Olhar para trás em Medicina não nos transforma em estátuas.
O ser humano desenvolveu os órgãos dos sentidos e cada um aplica a sua maneira pessoal com objetivos variáveis, de modo que tato, audição, visão, olfato e gustação desenvolveram-se multi-uso. Entretanto, o momento profissional com seu viés coletivo veta radicalizações como a eliminação do uso na conexão médico-paciente direta para os incorporar tão somente no uso de aparelhos, pretendendo melhor emprego do tempo no ecossistema da beira do leito. A Bioética da Beira do leito considera que inspeção, palpação, percussão, ausculta são métodos tradicionais do exame físico articulados com os órgãos dos sentidos que conectam o médico ao paciente comandados pela mais alta tecnologia que se conhece, a do cérebro humano.
Atualmente, o quarteto é utilizado para a conexão com computadores e smartphones. Desassossega um nível de competição, ou seja a possibilidade do desvio teleguiado da atenção ao paciente ajuizável como anti-ético. Poucos são imunes a este “vírus eletrônico” que infecta a concentração mental. Registre-se, historicamente, que, num sentido inverso o desenvolvimento tecnológico contribuiu para um segundo plano do uso de dois órgãos dos sentidos, o olfato (“o cheiro hepático”) e a gustação ( amostra da urina na detecção do diabete) pelo médico na beira do leito do leito. Restou o trio da visão, audição e tato, que sustentaram expressões clássicas da atuação do médico como olhar de relance, ser todo ouvidos, mão de fada.
O paciente chama a atenção por meios sonoros pela queixa, eventualmente por algum ruído como a tosse, o espirro e o estridor laríngeo. Instrumentos eletrônicos cobram atenção por meio de ruídos programados, inclusive convencionados. Estes são alertas que causam efeito semelhante ao do toque do telefone fixo, ou seja, tendem a provocar uma prioridade de atendimento. Desta maneira, criam-se possibilidades para a ocorrência na beira do leito do deslocamento da atenção preferencial para o aparelho. Curiosamente, empregam-se os mesmos métodos do exame físico, a inspeção – por exemplo, do tipo de comunicação recebida-, a palpação – por exemplo, para o enquadramento para leitura, a percussão – por exemplo, do teclado visando emitir respostas- e a ausculta- por exemplo, de mensagem de voz. Também não se observa nem gustação, nem olfato – por enquanto…
Uma boa parte desta atividade é feita com a mão, este valioso instrumento propedêutico da tradição da Medicina – que está sob risco de extinção-, mais especificamente, com as pontas do dedos. Enquanto que estas costumam ser obedientes a uma rotina de exame do paciente e raciocínio clínico, o mundo atual do ecossistema da beira do leito impactado pelas mídias sociais as absorveu de modo altamente energizadas e com chances de “desobediência” do cérebro profissional e ético.
As pontas dos dedos viraram enfants terribles dominados pelo imediatismo de uma comunicação fácil, amiga do ego e transgressora do superego. Instrumentos da “verdade líquida”, elas atingiram o ponto de ser um prazer da pós-modernidade, viciante e imune a críticas. Desligue o celular é apelo cada vez menos atendidos, pois não se desliga do celular, conforma-se em deixá-lo, no máximo no modo avião.
Importante a destacar que elas pertencem a um médico cuja responsabilidade profissional é individual e exigente do respeito a valores e a regras, obrigado a um alinhamento com a moralidade e a ética de classe. O equilíbrio está a caminho. A Bioética da Beira do leito dispõe-se a colaborar tornar a nuvem menos nebulosa.