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537- Memória sobre a beira do leito

A Bioética entusiasma. Por enquanto não muitos profissionais da saúde, é verdade. Uma razão para o não entusiasmo é que grande parte dos médicos não se apercebe que pratica vários aspectos da Bioética diariamente na  rotina que lhe aparenta ter sido sempre assim através dos tempos relativamente mais recentes.

Por isso, o entusiasmo embutido na Bioética pelo valor da história que pode ser contada por aqueles que vivenciaram  uma beira do leito não longe no tempo, mas distante na forma de conexão médico-paciente. Apesar que, ressalte-se,  a memória pode pregar algumas peças e criar narrativas que não aconteceram precisamente como lembrado.

Recordações desta natureza precisam encontrar utilidade, como contribuir para alertar que o que se está praticando costumeiramente, inclusive, em consonância com a Bioética, é um redesenho, um uso adaptativo permanente com o lápis criativo e a borracha moderada. Um dos redesenhos a ser apreciado pela memória de vivências na beira do leito é o que diz respeito à imersão da Medicina na condição humana, ou como queiram, a submersão desta naquela.

Se definirmos como 50 anos um período razoável para apreciação do redesenho  sobre o sentido humano da conexão médico-paciente, haverá poucos médicos ainda atuantes para compartilhar a memória profissional com os jovens e, assim, dar uma valiosa contribuição para que eles entendam com mais abrangência e profundidade as interações contemporâneas entre benefício, malefício e livre arbítrio na beira do leito.

O mergulho no humanismo tangível à Medicina contribui para a reflexão crítica sobre posturas de paciente que soam como inadequações para a saúde e geram perplexidades no médico ético. Um tema é o choque que  uma não autorização do paciente provoca no profissional que foi treinado para recomendar e aplicar métodos vantajosos sobre as doenças e com repercussão sobre o prognóstico da qualidade de vida e sobrevida.

Há meio século, conjecturas sobre conveniências dos efeitos da aplicação da Medicina eram restritas, essencialmente, à mente do médico. Era ele que pensava integralmente e as dúvidas porventura presentes na intimidade do paciente não costumavam ser verbalizadas com o objetivo de uma análise conjunta sobre prós e contras. Ordem médica é para ser cumprida era um lema da beira do leito.

Assim, um clima que exalava confiança total no profissionalismo do médico dominava a beira do leito, muito embora pudessem pairar muitas contraposições no paciente da “boca para dentro”. Em termos gerais, a tomada de decisão unilateral era feita sob boa-fé, conformidade e respeito à crença de verdade que o médico tinha da Medicina vigente. É fato, que havia alguns “subterfúgios semânticos”, como interesse científico e investimento em curva de aprendizado, que colocavam as iniciativas numa zona cinzenta sobre o proveito para a saúde do paciente.

Mesmo em ambientes onde havia mais crítica a respeito da passividade do paciente perante a autoridade médico, dominava o conceito que (eventuais) abusos não deveriam comprometer o uso (impositivo).

Mas, o grito de apoio ao direito do paciente de externar suas preferências, desejos e valores num contexto de aprovação – ou não- veio, justamente dos abusos, especialmente, de concepções desrespeitosas de projetos de pesquisa clínica. O consentimento no uso da assistência nasceu, portanto, como uma migração da salvaguarda do abuso na pesquisa em seu amplo sentido, mais ou menos formal, pois, muitas vezes verificava-se uma certa superposição de concepção sobre assistência e pesquisa que gerava indefinição.

Desta forma, a difusão da memória sobre a origem do (não) consentimento  facilita as gerações mais jovens de médicos a entender negativas “absurdas” do paciente como um aspecto das relações humanas no campo da aplicação da Medicina. O rigor tecnocientífico não deve deixar de sustentar a recomendação do médico, mas, o paciente capaz tem direito de solicitar flexibilizações ou até mesmo manifestar a rejeição total, em nome da sua vontade por motivos de foro íntimo.

 

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