PUBLICAÇÕES DESDE 2014

521- Imunização ao avesso

Sucedem-se notícias de atendimentos ilegais ou antiéticos na área da Medicina. São métodos não validados, são leigos se passando por profissionais da saúde, o que, de certa forma, acaba indevidamente respingando na credibilidade da Medicina, ipso facto do médico em geral. Evidentemente, a prática das ilicitudes é facilitada pela receptividade de quem pretende satisfazer um desejo não alcançável tecnica ou financeiramente num atendimento ético e legal. Há um “mercado” suscetível a um comportamento de pós-verdade, aquele onde crença pessoal e reação emocional superam a objetividade na formação de opinião.

Assim, após ter experimentado negativas de médicos conscienciosos ou sob influência de comadres – inclui as várias redes sociais neste termo guarda-chuva tão brasileiro-, uma pessoa com forte vontade de ser atendida entra num processo que se assemelha ao da chamada Imunização Cognitiva.

Diríamos que contaminada pelo virus da pós-verdade, o cidadão (ã) desenvolve mecanismos protetores, contudo, curiosamente, para se prevenir do correto, imuniza-se contra o senso comum. É explicação para a prática dos disparates de decisões sobre o próprio corpo, para a aceitação de ideias erradas em relação à realidade, que podem ser baratos financeiramente, mas caríssimos para a saúde.

O conceito denota a ocorrência de um processo mental meio obsessivo-compulsivo que anestesia o bom senso e leva ao comportamento temerário. Não deixa de ter um viés da modernidade líquida que privilegia a individuação comprometendo a solidez de orientação. Os fundamentos da ética médica vigente são desconstruídos sem reconstrução que possa representar ajuste justificado de novos tempos. Há um comportamento de camaleão, identidades distintas se formam ante circunstâncias diferentes.

Dominado pela forte vontade de se submeter, a pessoa procura se isolar do contraditório. Pela intolerância com senso comum, protege-se de mensagens de bom senso por uma “surdez” e uma “cegueira” seletivas, restringe a atenção para o que está exclusivamente alinhado consigo. Desenvolve-se uma sintonia com um pensamento fixo e  fortalecem-se vínculos com os adeptos da mesma disposição, sejam eles símiles receptores convencidos ou espertos aplicadores donos de retóricas eficientes e cresce a vulnerabilidade ao convencimento enviesado no processo de tomada de decisão. A pessoa em questão enche-se de ousadia, energizada pela insatisfação. Ela compõe argumentos de superioridade em relação ao convencional e, água mole, em pedra dura… termina por se submeter meio que no impulso, indo para uma clandestinidade ajudado por “confidentes- cúmplices” e de maneira, habitualmente, também clandestina em relação a entes próximos, agentes de censura que precisa evitar. Imuniza-se pelo avesso!

Infelizmente, um contingente vê o sonho volatizar-se e a história construída torna-se um fardo de arrependimento quando a “ficha cai” e a ligação com a ilicitude se completa num “alô idiotice”. A frustração com os efeitos e as adversidades corrói rapidinho a fantasia e, até, pode virar manchete na mídia. É condição com implicação policial que passa a requerer as mãos reparadoras do médico ético.

A Bioética é fórum que possibilita uma discussão transdisciplinar sobre a contribuição dos profissionais da saúde éticos para o esclarecimento preventivo da população sob risco de sofrer esta tão esquisita quanto humana modalidade de imunização cognitiva.

 

 

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES