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518- Mente de leigo no médico

No ensino da Bioética, quando se apresenta um conflito da beira do leito envolvendo pacientes, o aluno do primeiro ano de Medicina costuma analisar como um leigo preocupado essencialmente com o paciente. Já médico, o mesmo jovem avalia o mesmo caso segundo um profissionalismo vacilante. Não poderia ser diferente, mas, tem suas peculiaridades que vale a pena analisar.

As figuras do leigo apreensivo e do profissional vacilante distanciam-se por poucos anos, período em que a noção de responsabilidade vai modificando os focos de atenção clínica e reflexão sobre as essências do sujeito moral. Como exemplo, o jovem está na linha de frente de um Pronto Socorro e uma de suas missões é aplicar o tipo de protocolo de investigação ditado por sua avaliação inicial. A sua tendência é dar um caráter de obrigatoriedade, relacionado à ideia de ser do melhor interesse do paciente de que se sente guardião. Uma nítida perturbação se dá quando ele ouve um não consentimento do paciente. Haverá um bombardeio de inquietudes que provocará potenciais atitudes de imposição (“… o senhor tem que fazer!…“) ou de indiferença (“… se não quer, é problema seu…“).

A Bioética da Beira do leito procura dar a sua contribuição para o desenvolvimento de um certo equilíbrio na apreciação em dissensos de questões da beira do leito. De certa forma, ela ajuda a dar uma calibragem entre extremos de absolutismo cientificista sobre Medicina e total liberdade de expressão sobre si enquanto paciente. Uma notória fonte de ambiguidades em se tratando de influência no prognóstico de vidas humanas. Já ouvi estudante expressar: “… quer dizer, professor, que deverei ser um médico-garçon apresentando o menu para escolha do paciente?…”, ou, então: “… se o paciente me procurou é porque quer que eu conduza o seu caso…”.

A transdisciplinaridade domina a beira do leito contemporânea. Ela traz um auxílio valioso para a conexão médico-paciente por meio da tríade que a sustenta: rigor, abertura e tolerância. O leigo primeiranista de Medicina tem uma visão “natural” sobre abertura a desconhecimentos e a imprevisibilidades e sobre tolerância a opiniões contrapostas.  Já médico, ele atenua a naturalidade pelo dever de hierarquizar o rigor tecnocientífico, ou seja, condutas validadas  passam a dominar  o seu profissionalismo.

A ética lhe adverte, contudo, que precisa raciocinar com prudência e aplicar com zelo, trazendo a lição que tem que aprender a se portar qual bambu, flexibilizar de modo proporcional às circunstâncias ambientais para persistir sem quebras na sua estrutura profissional. Parte desta flexibilidade adaptativa, que permite “balançar” tendo os pés no chão,  sem levantar voos sabe lá para onde, é energizada pelo “quantum de leigo” que o jovem médico incorpora da sua formação cultural.

Esta determinação é beneficiada pela coragem criativa que o jovem médico desenvolveu ao longo de encontros conflituosos na sua infância e juventude. Ela auxilia a modular o manejo do rigor tecnocientífico exigido pelo profissionalismo – a mente de médico que passou a dominar- com processos de adaptabilidade à pessoa do paciente – herança da mente de leigo. Por outro lado, é desejável que leigo possa “caminhar” com os sapatos profissionais para melhor sentir os percalços do caminho tecnocientífico, seus pedágios, atalhos e vias sem saída.

A disposição para ir ao encalço dos ajustes, ao mesmo tempo em que está associada ao respeito ao direito ao princípio da autonomia pelo paciente, requer, em nome da máxima autenticidade da tomada de decisão, a prática do paternalismo fraco  que dá vigor ético ao médico. Ele representa o “fio de Ariadne” que orienta e um método que evita o desperdício de matéria prima de compreensão mútua que dá qualidade à mixagem de mentes profissional e leiga na construção de tomadas de decisão na beira do leito.

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