PUBLICAÇÕES DESDE 2014

516- Máquinas frutíferas (Parte 2)

Cada beira do leito contemporânea convive, a sua maneira, com um conjunto de consensos de médico e paciente, um conjunto de contraposições que justificam serem apreciadas e um conjunto de aspectos desviantes que, em princípio, devem ser neutralizados, quer ligados a conflitos de interesse, inadequações do sistema de saúde, ou mesmo, iniciativas “estranhas” do paciente. Esta visão de esferas de Hallin (Daniel C., nascido em 1953) conecta-se com o processo de consentimento livre e esclarecido.

A relevância do consentimento pelo paciente é ponto capital da atualidade da Medicina. Sim é sim e Não é não tornaram-se expressões pétreas na beira do leito da hierarquização do paciente como alvo da Medicina, como barreira ao absolutismo cientificista, como evitação de vieses de priorização intelectual pelo médico, enfim, de apoio ao direito do paciente de entender ao seu modo sobre benefício ou violência para si.

Neste cenário de possibilidade de escolhas “apaixonadas” e libertárias não convencionais e de desvios do racional ditado pela tradição, associadas à condição humana, cabe a lembrança ao início de Anna Karenina “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma a sua maneira” de Liev (Leon) Nikoláievich Tolstói (1828-1910). Na beira do leito, diríamos:  “Todos consentimentos são iguais. Os não consentimentos são cada qual a sua maneira”.

É fundamental considerar o paciente como um leigo com a vulnerabilidade acentuada que impacta nas peculiares da  sua condição humana. Suas reações iniciais às recomendações médicas costumam conter muito de emocional, “nocautes” não são incomuns perante más notícias exigindo tempo para superação da desorientação, portanto, são respostas “provisórias” passíveis de uma melhor apreciação racional.

A chance de o não consentimento corresponder a comportamento transitório é justificativa bastante para que a apresentação sobre a Medicina que cabe no momento seja repassada pelo médico com o objetivo de melhor esclarecer e promover eventual mudança consciente de opinião. Esta atitude profissional expressa o paternalismo fraco, que embora contenha palavra “proscrita” pelo conceito da autonomia, não deve ser visto como conflitante com o direito ao princípio da autonomia, já que não impõe e não proíbe. Destaque-se que o paternalismo fraco faz lembrar aspectos evidenciados na Janela de Overton (Joseph P., 1960-2003), no sentido de uma progressão proibição, proibição com ressalvas, neutralidade, permissão com ressalvas e permissão, realizável  na beira do leito dentro de limites das boas práticas.

De fato, todo este cenário de acolhimento com discernimento é compatível com a preservação de uma atmosfera ética, legal e com moralidade. Mas, como já comentado na parte 1, a Medicina evolui cada vez mais acelerada em transformações. E não se pode negar uma mentalização destas como reais metamorfoses de resultados, mais acertos diagnósticos, mais detalhamentos orientadores,  mais curas, menos recidivas, melhores prognósticos.

Afinal. o que é mesmo que o paciente deseja do ponto de vista tecnocientífico, senão ter a sua vida de volta, evitar sofrimentos, conviver  com o seu aglomerado de saúde e doença, preservando qualidade de vida? No íntimo, o paciente pretende da Medicina que o médico lhe prometa o resultado pelo qual se empenha por meio dos métodos indicados, vencendo quaisquer limitações tecnocientíficas ou obstáculos derivados do próprio paciente. Lembrando Antoine de Saint-Exupery (1900-1944), a perfeição não está no que faltaria acrescentar, mas quando não há nada a ser dispensado.

Assim, o médico/Medicina sempre espera muito pelo está para chegar e se tornar imprescindível para maior eficácia do empenho profissional. É um muito cada vez mais diferenciado. Pode-se dizer que as transformações que estão “no forno” ou já sendo servidas aqui e acolá, irão alimentar forte e radicalmente a triangulação Medicina, médico e paciente. Prevê-se uma composição que poderá estreitar as lacunas entre a responsabilidade profissional do empenho não sujeita a promessa e o desejo do paciente  por um resultado efetivamente reparador e que possa ser jurado acontecer.

A maior convergência está sendo esperada pela expansão tecnológica de alta resolução aplicada à Medicina. Contagiante, ela entusiasma e assusta o médico. Entusiasma pelas perspectivas do ganho de eficiência, assusta pela impressão de perda de controle humano, inclusive, pela ideia de ascensão de poderosos algoritmos sobre a capacidade do ser humano, tendendo para uma forma autônoma de comportamento “robotizado”. Investimentos na saúde poderão ser dominados pela aplicação em incríveis máquinas. A assim dita baixa tecnologia da anamnese e do exame físico (na verdade uma tremenda desconsideração sobre a altíssima capacidade humana) ficaria relegada a plano menor. Uma violência à tradição? Um acolhimento à modernidade? Nove vezes fora?…

Bom… os conceitos de violência e de acolhimento são relativos. A história da Medicina ensina que os médicos de antigamente eram muito acolhedores e pouco resolutivos, nenhuma ideia de violência era entendida pelo paciente. À medida que a Medicina progrediu, especialmente no decorrer do século XX, criaram-se alertas do humanismo sobre violências -a Bioética, por exemplo-, pois impetuosidades da  ciência e humanismo acolhedor passaram a estar em progressiva divergência. Iniciativas por humanização proliferaram, o humanismo “perdido” precisava ser resgatado e, inclusive, adaptado aos novos tempos, por exemplo, em relação a visões atuais da sociedade sobre a terminalidade da vida. Uma revolução de ideias que agora encontra uma revolução tecnológica executora do “ficcional”.

O ecossistema da beira do leito precisará se adaptar à supermodernidade  que chega como Medicina de precisão, sustentação por genoma, inteligência cognitiva, computação avançada, big data, robôs. O médico tal como conhecemos hoje não será o mesmo. Será melhor? Será pior?

A atenção diferenciada às necessidades biológicas trará desatenção ao aspecto humano? O poder econômico e político achatará de vez a liberdade profissional? O médico tornar-se-á um assistente de robô? Ou um boneco de ventríloquo da máquina? O Homo sapiens será substituído pelo Maquino duco? Resistências e aversões manifestam-se diante de ameaças aos “filhos” de Hipócrates, o Pai da Medicina. este perderá a imortalidade? Fica sempre a expectativa que haverá um reequilíbrio,  como sempre houve na História da Medicina.

Por mais que possamos tentar fazer difíceis exercícios de futurologia, só o tempo dirá. O que parece claro é que o médico sempre teve altíssima capacidade de adaptação à Medicina progressista e consegue através dos tempos conciliar o clássico e a inovação – as já velhas radiologia e eletrocardiografia foram espantosas manchetes quando surgiram.

Evidentemente, a inovação em vista trará mudanças expressivas de paradigmas, buscas por novas estratégias de profissionalismo médico, afinal alguém terá de prover aconselhamentos ajustados, decodificar e operar máquinas. A juventude atual dos futuros médicos a se envolverem com as  “terríveis máquinas” já exibe um promissor potencial adaptativo nestes tempos de pós-modernidade, demonstra subsídios para manejo e integração com a globalização, o que facilitará os ajustes.

E o paciente nisto tudo? Assim, considerando o imperativo de Immanuel Kant (1724-1804) –  faça ao outro como você gostaria que lhe fizesse-, vale uma provocação pelo texto abaixo, tendo o médico o cuidado de, ao ler, se lembrar de situações em que ele – ou alguém afetivamente bem próximo-  já foi ou é paciente: ” … Para mim, paciente, quando me sinto prejudicado na qualidade de vida, sofredor, incapacitado, o que vale mesmo é o doutor acertar o diagnóstico o mais rápido possível, prescrever o tratamento que dará certo, e eu , assim, poder obter a minha vontade pelo resultado pretendido e resolutivo; esta questão de humanização é legal, me conforta numa hora delicadíssima, porém, palavras e gestos bonitos é pouco quando eu desejo mesmo é voltar logo a minha vida útil; para mim, quanto mais se pretende aplicar humanização, mais me parece que se está longe da resolução, ou ela é impossível; os médicos não deviam se preocupar com o futuro da sua profissão acima da modernidade transformadora da inteligência cognitiva em máquinas com maior possibilidade de eficácia, afinal, eles não pretendem o melhor para os pacientes? Se isto fizer com que os médicos se sintam escorregando por um plano inclinado, Narcisos receando  ter que mudar o profissionalismo a que estão acostumados, abdicarem da tradicional liderança, paciência, eles encontrarão novas formas de atuar; será em nome de uma máxima esperança de boas oportunidades, de uma total liberdade de escolha, um utilitarismo globalizado, mas atento às peculiaridades culturais, que eu posso classificar como de certa forma análogo ao Utilitarismo Superior ligado à Felicidade Máxima como concebido em Admirável Mundo Novo pelo médico Aldous Huxley (1894-1963). Deve predominar o ponto de vista de um lado positivo do progresso da ciência de modo geral, revolucionário, agindo interdisciplinarmente com as ciências da saúde, um triunfo da Humanidade sustentado pela tecnologia de ponta. Quem pode desdizer que o meu smartphone é uma máquina extremamente útil que me ajuda a viver, conviver e reviver? O que eu quero é ficar bom, não importa se tiver que ser meio de uma máquina; que a vistam  com um jaleco, mouse no bolso e carimbo eletrônico…” .      

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES