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505- Insuficência cardíaca e suficiência bioética (Parte 2)

Personagens

Dr. PN – cardiologista.

LS – portador de insuficiência aórtica  reumática, sob cuidados do Dr. PN há 8 anos.

GZ  – personificação da  bioética.

BP – bioprótese cardíaca, por deferência da prosopopeia.

Cena: Segundo pedágio bioético

Dr. PN   -LS, você tem preferência por algum cirurgião?

LS -Não tenho, pensei até que era o senhor quem  me operaria.

GZ  O Dr. PN  propôs a operação em nome de uma equipe, o bisturi não estaria em suas mãos. Um cirurgião específico ou o cirurgião da casa pode fazer diferença em termos de autonomia, pois o paciente poderá consentir em ser operado só por determinado cirurgião.

Ao receber carta branca para a escolha da equipe cirúrgica, o Dr. PN  torna-se  também avalista dos vários procedimentos, muito mais do que um simples receptor  do consentimento  livre  e  esclarecido.

Cena : terceiro pedágio bioético

Dr. PN -LS, você  aceita  participar  como voluntário de uma pesquisa sobre uma nova bioprótese?

LS  – Se quem me pede é o  médico   da minha confiança, presumo que devo aceitar.

Dr. PN – É um projeto que  tem grande  interesse científico na área das doenças das válvulas cardíacas e o seu caso satisfaz os critérios de inclusão.

LS  -­­Desejo colaborar com o meu médico e com a ciência.

Dr. PN  -A hipótese é que esta nova bioprótese vai trazer  mais vantagens  para  a  circulação do sangue  dentro do coração  e reduzir a  probabilidade  de uma reoperação.

LS  – Desejo colaborar com o meu médico, com a ciência e com o  meu coração.

GZ  – LS  é apresentado a um projeto que visa a integrar interesses da Cardiologia e do pesquisador com o suposto interesse  do voluntário. LS  se identifica com ele via seu médico de confiança. O Dr. PN é experiente em captar pacientes no ambulatório e  realocá-los no laboratório de pesquisa. Os seus princípios morais recomendam que o espírito científico, o próximo congresso e o apelo ao altruísmo não podem,  sob nenhuma hipótese, falar mais alto  do  que  a capacidade de escolha do paciente. É a boa relação Dr.PN-LS que fundamenta o estímulo pela deferência, explícita nas respostas afirmativas de LS.  Angústias pelo conhecido e pelo desconhecido por parte de LS,  mais uma   vez,  atapetam a decisão sem  nenhum entendimento de abuso de autoridade por parte do Dr. PN. Simples aquiescência  pela confiança no médico? Real consentimento pela beneficência presumida?  O certo é que LS assina o  Termo de Consentimento e  é passado para a categoria de  voluntário de pesquisa. Entusiasmado com as expectativas  progressistas  apresentadas  pelo Dr. PN  que  funcionam como certa compensação ao desalento pela operação, LS até se sente com sorte pelo  seu coração poder desfrutar do  “melhor”.  Quem sabe a operação não seria tão má… A pesquisa que  envolve  implante de bioprótese, ao contrário de outras compostas  por etapas operacionais subsequentes, não costuma exigir  continuidade de consentimento. De fato, não cabe o princípio da revogabilidade, pois  uma  vez  que  a válvula doente tenha  ido parar na mesa da instrumentadora cirúrgica,  a história pós-operatória passa a compor obrigatoriamente a vida do paciente. Nenhum botão rewind  pode ser apertado, pois a válvula nativa excisada  já estaria fatiada, incluída em lâminas, sob o microscópio de um membro da equipe que, por ofício, costuma ficar  à margem das coisas da  autonomia. O exame anatomopatológico de peça cirúrgica não suscita, habitualmente,  reflexões sobre preservação de abuso da  autoridade  médica. Por estrito rigor  deveria?…

Cena: quarto pedágio bioético

GZ  – Quando está sendo colocado na maca para transporte ao Centro Cirúrgico, já sob efeito do pré-anestésico, LS recebe a visita do Dr. PN. O que parecia para LS uma bem-vinda atitude de solidariedade, de repente transforma-se na  privação de uma fonte de otimismo que estava servindo de suporte emocional.

Dr. PN  – LS,  tenho o dever de  o informar que você foi sorteado pelo computador para ser paciente-controle na pesquisa.

LS  — Doutor, a “velha”?!…

GZ  – LS não  consegue completar, pois o elevador chegara e ele está passageiro na maca, imediatamente  empurrada adentro. Como será que funciona a autonomia para quem se encontra inferiorizado para dialogar, deitado vendo o mundo desabar de baixo para cima e ademais já entorpecido pelo dormonid? Curioso é que se  LS  pudesse ter optado pela revogação da condição de voluntário da pesquisa,  nada mudaria,  porque ele receberia a mesma bioprótese “velha”…

Dr. PN  (falando com seus botões …do avental) – Imagino quantas pessoas não abdicaram de vacinação, e até se revoltaram, para depois terem de dar consentimentos muito mais angustiantes. Fico pensando que LS não teve oportunidade de dizer não à  febre reumática, origem da sua valvopatia e,  agora,  há que se indagar quais os limites do exercício do seu direito à autonomia frente a quem  pretende minimizar as conseqüências da doença imposta?

GZ  – LS  fica triste com a notícia,  pois as explicações sobre a nova bioprótese provocaram um efeito pessimista sobre a “velha”. Fica claro que o cronograma da pesquisa tivera um sim  inicial para a nova bioprótese como senha  do respeito à autonomia para a condição de voluntário e um não à mesma pela heteronomia de um programa de computador paternalista.

A prática da autonomia na beira do leito costuma ter sucessões de escolhas com graus não idênticos de liberdade e de esclarecimento, o que parece impedir a aposentadoria do paternalismo por tempo de serviço. De alguma forma, a bioprótese-controle que foi parar no coração de LS por uma aceitação “autônoma” representa certa analogia conceitual com o discutível uso “paternalístico” de placebo  em pesquisa.

Cena: Quinto pedágio bioético

GZ  –  O Dr. PN tinha expertise a respeito da utilidade e a eficácia das biopróteses. Os medicamentos ministrados  de 8 em 8 horas haviam esgotado o poder da beneficência e agora ele é transferido para a continuidade de uma bioprótese-24horas. A relação custo-efetividade é um continuum  na análise da beneficência e, na perspectiva de desconforto clínico, o implante da bioprótese representa risco e custo aceitáveis.

BP  – O meu dia a dia de pericárdio era proteger o coração de um boi;  resgataram-me no frigorífico, deram-me um banho de  laboratório e prepararam-me para uma  nova missão de bio-solidariedade. Pelo progresso tecnológico, nasci bovino e vou salvar uma  vida humana, não como alimento, mas como prótese,  fazendo  o bem no interior do coração de alguém  que passará a depender de mim. Ensinaram-me como devo trabalhar: facilito  a passagem do sangue num sentido e a impeço  no oposto. Estou ciente que,  abrindo e fechando umas 120 mil vezes por dia, sete dias todas as semanas,  vou sofrer desgastes e ser substituída após alguns anos de atividade contínua. É a minha missão. Estou consciente que não me fizeram perfeita,  mas,  se  a válvula  que  a natureza cria fica doente, quando ela  não mais pode garantir conforto, torno-me  melhor  do  que  ela.

GZ  – A inexistência de uma   bioprótese  ideal  insere-se no conceito que ações de beneficência costumam ter limites proporcionais à gravidade da situação;  e assim, graus restritos de utilidade e eficácia não devem desestimular estratégias beneficentes quando  houver superposição de objetivos por parte do médico e do paciente.

LS   – Sei que recebo a bioprótese não por um impulso, mas como ato de estrita prudência do Dr. PN. Ele assim decidiu  por ser a melhor maneira possível de praticar beneficência diante da minha condição clínica.

GZ  – Se autonomia representa o presente, beneficência figura o futuro, o  continuar  desfrute da vida  por parte de LS  apesar do passado de doença valvular.

LS   – Estou ciente de que a eficácia desta beneficência está, de certa forma, limitada pela utilidade provisória da bioprótese  e que  reoperação  é  o  preço  da manutenção do bem que ora recebo.

Dr. PN -Neste momento  confesso minhas angústias pelo que conheço sobre prós e contra de um implante de bioprótese, mas devo  priorizar o compartilhamento  com LS  da  beneficência da bioprótese.  É a  crença do médico que nada tem de religiosa, mas  tem o  mesmo sentido de  salvação.

GZ  – Esta última reflexão é um santo remédio, pois contribui para evitar  que  no  íntimo do paciente haja conflito entre consentimento e esperança. E para o médico, não deixa de ser uma forma de reconforto perante eventual mau resultado.

Cena: Sexto pedágio  bioético

GZ  – O Dr. PN não precisou se preocupar com o hipocrático primum non nocere, pois  aquela certa indiferença embutida em se bem não faz, pelo menos  não faz mal… não se aplica a uma operação  cardíaca para implante de  uma bioprótese.  Em relação à valva humana, caberia  uma adaptação:  se além não faz,  de menos não faz .

BP  -Nunca é demais repetir que o doutor  ajusta-se comigo quando entende  que a válvula nativa lesada é melhor do que eu quando ela ainda  permite boa qualidade de vida;  e entende que eu sou  melhor  quando ela, ao contrário, provoca sintomas incapacitantes.

GZ  -Por isto, não maleficência numa primeira etapa da doença de LS representa abstenção de indicar a cirurgia prematuramente. A mesma bioprótese hoje beneficência teria sido maleficência ontem.

Dr. PN ­-Entendo que pratico não maleficência  para LS quando  me preocupo  com  tudo que represente evitar  atos transoperatórios  danosos por comprometer  a beneficência pretendida.

GZ – A consecução do objetivo não maleficente do Dr. PN passa pela  qualificação do fator humano e pela qualidade  da infra-estrutura, respeitado o caráter biológico da situação.

Dr. PN – Em relação ao fator humano, sou o avalista do consentimento de LS em nome da equipe multiprofissional; eu reconheço minhas  responsabilidades  como médico-assistente  e as  co-responsabilidades em relação  aos meus colegas. Conheço bem o artigo 3º do Código de Ética Médica vigente que veda deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento  médico  que indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente.

GZ  – Quanto à infra-estrutura,  tudo que possa dizer respeito à  correta  alocação de recursos (pessoas e materiais) por parte da fonte pagadora e da instituição, torna-se importante fator de não maleficência para LS.

LS -Compartilho com o Dr. PN a confiança no nome, na tradição do hospital. Hotelaria modesta, posso aceitar, certas intercorrências, depende, não dispor de equipamento essencial é inaceitável.

BP  – Não  venho exatamente com um manual do proprietário  mas,  por  tudo que representa a minha presença num coração  há muito tempo doente, quem me recebe tem  que saber como cuidar da sua cota de compromisso com a preservação do bom funcionamento. Se o consentimento de LS  para que eu entrasse no seu coração foi atitude pré-operatória, se  a  beneficência/não maleficência dos fatores pessoal e material foi transoperatória, cuidados na minha história pós-operatória depende da adesão de LS,  meu receptor.

GZ  – Autonomia de LS,  autonomia do Dr. PN, beneficência da reversão da insuficiência cardíaca, não maleficência da ausência de complicações inadmissíveis, foram aspectos da beira do leito que valorizaram a bioética nestas cenas, pela integração entre ciência e  humanismo.

Dr. PN  –Por tudo isto,  sigo o lema: bioética… não chegue à beira do leito sem ela!

Cena:  45 dias depois da alta hospitalar

LS   – Eu já retornei a minha rotina

BP  – As minhas funções estão normais e me desempenho conforme o previsto. Sinto-me útil para LS.

Dr. PN  – Os exames que realizei  em LS comprovam  a eficácia da bioprótese. Ele está  usufruindo da beneficência da bioprótese reforçada pela não maleficência de tudo a que fui submetido.

GZ   – O resto… bem o resto, ficou tão somente um registro no  prontuário.

Até a reoperação…

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