Personagens
Dr. PN – cardiologista.
LS – portador de insuficiência aórtica reumática, sob cuidados do Dr. PN há 8 anos.
GZ – personificação da bioética.
BP – bioprótese cardíaca, por deferência da prosopopeia.
Cena: Segundo pedágio bioético
Dr. PN -LS, você tem preferência por algum cirurgião?
LS -Não tenho, pensei até que era o senhor quem me operaria.
GZ O Dr. PN propôs a operação em nome de uma equipe, o bisturi não estaria em suas mãos. Um cirurgião específico ou o cirurgião da casa pode fazer diferença em termos de autonomia, pois o paciente poderá consentir em ser operado só por determinado cirurgião.
Ao receber carta branca para a escolha da equipe cirúrgica, o Dr. PN torna-se também avalista dos vários procedimentos, muito mais do que um simples receptor do consentimento livre e esclarecido.
Cena : terceiro pedágio bioético
Dr. PN -LS, você aceita participar como voluntário de uma pesquisa sobre uma nova bioprótese?
LS – Se quem me pede é o médico da minha confiança, presumo que devo aceitar.
Dr. PN – É um projeto que tem grande interesse científico na área das doenças das válvulas cardíacas e o seu caso satisfaz os critérios de inclusão.
LS -Desejo colaborar com o meu médico e com a ciência.
Dr. PN -A hipótese é que esta nova bioprótese vai trazer mais vantagens para a circulação do sangue dentro do coração e reduzir a probabilidade de uma reoperação.
LS – Desejo colaborar com o meu médico, com a ciência e com o meu coração.
GZ – LS é apresentado a um projeto que visa a integrar interesses da Cardiologia e do pesquisador com o suposto interesse do voluntário. LS se identifica com ele via seu médico de confiança. O Dr. PN é experiente em captar pacientes no ambulatório e realocá-los no laboratório de pesquisa. Os seus princípios morais recomendam que o espírito científico, o próximo congresso e o apelo ao altruísmo não podem, sob nenhuma hipótese, falar mais alto do que a capacidade de escolha do paciente. É a boa relação Dr.PN-LS que fundamenta o estímulo pela deferência, explícita nas respostas afirmativas de LS. Angústias pelo conhecido e pelo desconhecido por parte de LS, mais uma vez, atapetam a decisão sem nenhum entendimento de abuso de autoridade por parte do Dr. PN. Simples aquiescência pela confiança no médico? Real consentimento pela beneficência presumida? O certo é que LS assina o Termo de Consentimento e é passado para a categoria de voluntário de pesquisa. Entusiasmado com as expectativas progressistas apresentadas pelo Dr. PN que funcionam como certa compensação ao desalento pela operação, LS até se sente com sorte pelo seu coração poder desfrutar do “melhor”. Quem sabe a operação não seria tão má… A pesquisa que envolve implante de bioprótese, ao contrário de outras compostas por etapas operacionais subsequentes, não costuma exigir continuidade de consentimento. De fato, não cabe o princípio da revogabilidade, pois uma vez que a válvula doente tenha ido parar na mesa da instrumentadora cirúrgica, a história pós-operatória passa a compor obrigatoriamente a vida do paciente. Nenhum botão rewind pode ser apertado, pois a válvula nativa excisada já estaria fatiada, incluída em lâminas, sob o microscópio de um membro da equipe que, por ofício, costuma ficar à margem das coisas da autonomia. O exame anatomopatológico de peça cirúrgica não suscita, habitualmente, reflexões sobre preservação de abuso da autoridade médica. Por estrito rigor deveria?…
Cena: quarto pedágio bioético
GZ – Quando está sendo colocado na maca para transporte ao Centro Cirúrgico, já sob efeito do pré-anestésico, LS recebe a visita do Dr. PN. O que parecia para LS uma bem-vinda atitude de solidariedade, de repente transforma-se na privação de uma fonte de otimismo que estava servindo de suporte emocional.
Dr. PN – LS, tenho o dever de o informar que você foi sorteado pelo computador para ser paciente-controle na pesquisa.
LS — Doutor, a “velha”?!…
GZ – LS não consegue completar, pois o elevador chegara e ele está passageiro na maca, imediatamente empurrada adentro. Como será que funciona a autonomia para quem se encontra inferiorizado para dialogar, deitado vendo o mundo desabar de baixo para cima e ademais já entorpecido pelo dormonid? Curioso é que se LS pudesse ter optado pela revogação da condição de voluntário da pesquisa, nada mudaria, porque ele receberia a mesma bioprótese “velha”…
Dr. PN (falando com seus botões …do avental) – Imagino quantas pessoas não abdicaram de vacinação, e até se revoltaram, para depois terem de dar consentimentos muito mais angustiantes. Fico pensando que LS não teve oportunidade de dizer não à febre reumática, origem da sua valvopatia e, agora, há que se indagar quais os limites do exercício do seu direito à autonomia frente a quem pretende minimizar as conseqüências da doença imposta?
GZ – LS fica triste com a notícia, pois as explicações sobre a nova bioprótese provocaram um efeito pessimista sobre a “velha”. Fica claro que o cronograma da pesquisa tivera um sim inicial para a nova bioprótese como senha do respeito à autonomia para a condição de voluntário e um não à mesma pela heteronomia de um programa de computador paternalista.
A prática da autonomia na beira do leito costuma ter sucessões de escolhas com graus não idênticos de liberdade e de esclarecimento, o que parece impedir a aposentadoria do paternalismo por tempo de serviço. De alguma forma, a bioprótese-controle que foi parar no coração de LS por uma aceitação “autônoma” representa certa analogia conceitual com o discutível uso “paternalístico” de placebo em pesquisa.
Cena: Quinto pedágio bioético
GZ – O Dr. PN tinha expertise a respeito da utilidade e a eficácia das biopróteses. Os medicamentos ministrados de 8 em 8 horas haviam esgotado o poder da beneficência e agora ele é transferido para a continuidade de uma bioprótese-24horas. A relação custo-efetividade é um continuum na análise da beneficência e, na perspectiva de desconforto clínico, o implante da bioprótese representa risco e custo aceitáveis.
BP – O meu dia a dia de pericárdio era proteger o coração de um boi; resgataram-me no frigorífico, deram-me um banho de laboratório e prepararam-me para uma nova missão de bio-solidariedade. Pelo progresso tecnológico, nasci bovino e vou salvar uma vida humana, não como alimento, mas como prótese, fazendo o bem no interior do coração de alguém que passará a depender de mim. Ensinaram-me como devo trabalhar: facilito a passagem do sangue num sentido e a impeço no oposto. Estou ciente que, abrindo e fechando umas 120 mil vezes por dia, sete dias todas as semanas, vou sofrer desgastes e ser substituída após alguns anos de atividade contínua. É a minha missão. Estou consciente que não me fizeram perfeita, mas, se a válvula que a natureza cria fica doente, quando ela não mais pode garantir conforto, torno-me melhor do que ela.
GZ – A inexistência de uma bioprótese ideal insere-se no conceito que ações de beneficência costumam ter limites proporcionais à gravidade da situação; e assim, graus restritos de utilidade e eficácia não devem desestimular estratégias beneficentes quando houver superposição de objetivos por parte do médico e do paciente.
LS – Sei que recebo a bioprótese não por um impulso, mas como ato de estrita prudência do Dr. PN. Ele assim decidiu por ser a melhor maneira possível de praticar beneficência diante da minha condição clínica.
GZ – Se autonomia representa o presente, beneficência figura o futuro, o continuar desfrute da vida por parte de LS apesar do passado de doença valvular.
LS – Estou ciente de que a eficácia desta beneficência está, de certa forma, limitada pela utilidade provisória da bioprótese e que reoperação é o preço da manutenção do bem que ora recebo.
Dr. PN -Neste momento confesso minhas angústias pelo que conheço sobre prós e contra de um implante de bioprótese, mas devo priorizar o compartilhamento com LS da beneficência da bioprótese. É a crença do médico que nada tem de religiosa, mas tem o mesmo sentido de salvação.
GZ – Esta última reflexão é um santo remédio, pois contribui para evitar que no íntimo do paciente haja conflito entre consentimento e esperança. E para o médico, não deixa de ser uma forma de reconforto perante eventual mau resultado.
Cena: Sexto pedágio bioético
GZ – O Dr. PN não precisou se preocupar com o hipocrático primum non nocere, pois aquela certa indiferença embutida em se bem não faz, pelo menos não faz mal… não se aplica a uma operação cardíaca para implante de uma bioprótese. Em relação à valva humana, caberia uma adaptação: se além não faz, de menos não faz .
BP -Nunca é demais repetir que o doutor ajusta-se comigo quando entende que a válvula nativa lesada é melhor do que eu quando ela ainda permite boa qualidade de vida; e entende que eu sou melhor quando ela, ao contrário, provoca sintomas incapacitantes.
GZ -Por isto, não maleficência numa primeira etapa da doença de LS representa abstenção de indicar a cirurgia prematuramente. A mesma bioprótese hoje beneficência teria sido maleficência ontem.
Dr. PN -Entendo que pratico não maleficência para LS quando me preocupo com tudo que represente evitar atos transoperatórios danosos por comprometer a beneficência pretendida.
GZ – A consecução do objetivo não maleficente do Dr. PN passa pela qualificação do fator humano e pela qualidade da infra-estrutura, respeitado o caráter biológico da situação.
Dr. PN – Em relação ao fator humano, sou o avalista do consentimento de LS em nome da equipe multiprofissional; eu reconheço minhas responsabilidades como médico-assistente e as co-responsabilidades em relação aos meus colegas. Conheço bem o artigo 3º do Código de Ética Médica vigente que veda deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente.
GZ – Quanto à infra-estrutura, tudo que possa dizer respeito à correta alocação de recursos (pessoas e materiais) por parte da fonte pagadora e da instituição, torna-se importante fator de não maleficência para LS.
LS -Compartilho com o Dr. PN a confiança no nome, na tradição do hospital. Hotelaria modesta, posso aceitar, certas intercorrências, depende, não dispor de equipamento essencial é inaceitável.
BP – Não venho exatamente com um manual do proprietário mas, por tudo que representa a minha presença num coração há muito tempo doente, quem me recebe tem que saber como cuidar da sua cota de compromisso com a preservação do bom funcionamento. Se o consentimento de LS para que eu entrasse no seu coração foi atitude pré-operatória, se a beneficência/não maleficência dos fatores pessoal e material foi transoperatória, cuidados na minha história pós-operatória depende da adesão de LS, meu receptor.
GZ – Autonomia de LS, autonomia do Dr. PN, beneficência da reversão da insuficiência cardíaca, não maleficência da ausência de complicações inadmissíveis, foram aspectos da beira do leito que valorizaram a bioética nestas cenas, pela integração entre ciência e humanismo.
Dr. PN –Por tudo isto, sigo o lema: bioética… não chegue à beira do leito sem ela!
Cena: 45 dias depois da alta hospitalar
LS – Eu já retornei a minha rotina
BP – As minhas funções estão normais e me desempenho conforme o previsto. Sinto-me útil para LS.
Dr. PN – Os exames que realizei em LS comprovam a eficácia da bioprótese. Ele está usufruindo da beneficência da bioprótese reforçada pela não maleficência de tudo a que fui submetido.
GZ – O resto… bem o resto, ficou tão somente um registro no prontuário.
Até a reoperação…