PUBLICAÇÕES DESDE 2014

504- Prevenção, invenção e intervenção

Medicina nunca foi uma ciência exata. Mas, busca-se torná-la. Está cada vez mais preparada para dar respostas precisas. Continua, entretanto, força científica confiável com previsibilidade limitada sobre resultados. O apuro é  desejo secular, haja vista os termos patognomônico – símbolo da exatidão- e idiopático- também, mas pelo avesso. Diagnóstico de certeza deve, quando possível, constar no relatório de alta do paciente, portanto, após passar por filtros de hipóteses possíveis e que alimenta registros e tende a desembocar em big data. Ou seja, Medicina admite exatidão conclusiva, contudo, prefere evitar o rótulo durante o percurso do atendimento.

O notável progresso tecnocientífico das últimas décadas abeira o saber transdisciplinar da Medicina contemporânea de plataformas de certeza. Pode-se dizer que há um arquipélago de ilhas de certeza, núcleos que reúnem a sofisticação do clássico – como a sustentação anatomopatológica- a inovação do conhecimento, dos métodos e do modo de pensar. Um arquipélago de libertação pois, ao contrário do arquipélago carcerário figurado por Michel Foucault (1926-1984), une positivamente médico, paciente, instituição de saúde e sistema de saúde, sob a vigilância da Ética.

Este arquipélago de libertação proporciona uma linguagem mais convincente para o diálogo do médico com o desejo do paciente pelo sucesso- endpoint da realização profissional tradicionalmente fincado no compromisso do empenho, mas, nunca objeto de jura de resultado.

A personificação de célula-tronco pelo estudante de Medicina incorporado por saberes e sabedoria ajuda a compreender como ele se diferencia quando instado a iniciar a função de médico. Ele põe-se a fazer acontecer o aprendizado. A vivência da linha de frente lhe apontará, contudo, lacunas e contraposições e, em decorrência,  diferenciações adicionais sobre a convivência com o não fazer acontecer – não ensinadas – ou não captadas- na graduação. Carências de matéria-prima para o empenho e/ou de real efetividade do empenho contribuem para reforçar o velho ar de dúvidas sobre terapêutica e renovar a ênfase sobre idealizações de prevenção.

Uma das questões atuais que surgem por inexatidões da Medicina é: Então, não fazer o quê, porque e quando? Uma resposta recorrente é não poder chegar a diagnóstico de certeza ou afiançar o resultado do tratamento quando o paciente manifesta não consentimento. O cuidado com anormalidades incômodas, a reversão de  uma disfunção de órgão, o controle de uma manifestação clínica, a evitação de  adversidades sobre outros órgãos não  podem ser incorporados ao arquipélago da libertação.

Reducionismos à parte, verifica-se que inexatidões que motivam interrupções de trânsito entre as ilhas ocorrem,  essencialmente, na chamada Medicina curativa – com pseudópodos para a Medicina defensiva-, em função, não somente da complexidade da fisiopatologia e infinitas combinações de repercussões clínicas, como também de potenciais danos da terapêutica.

A admissibilidade moral e a legitimidade científica da prevenção, vale dizer, a preservação do estado de saúde, não é atual. Há 26 séculos, Hipócrates admitiu o seu valor. Vacinas tornaram-se um bem da saúde humana e o foco nos chamados fatores de risco virou advertência universal. Porém, são insuficientes pela abrangência das etiopatogenias. A realização de checkups individuais não é novidade, mas suas efetivas vantagens são pontuais.

Pensamentos avançados sobre práticas de prevenção no âmbito da Saúde colidem com realidades da mentalidade do ser humano, diversidades da condição humana, aspectos sociais, culturais, filosóficos e econômicos. Num Brasil de dimensão continental, pluriétnico e multicultural, figuras comuns como “na segunda-feira eu começo a mudar”, “o meu governo investirá mais na Saúde”, “morre-se mesmo, porque, então é que devo evitar o prazer do cigarro” são emblemáticas da contraposição entre ciência sobre fatores de vida saudável e consciência para o cumprimento em nível pessoal. Impressiona que um expressivo contingente de profissionais da saúde fuma, ou seja, uma vez adquirido o hábito ainda leigo, apenas informações sobre causalidade não bastam, há muito mais desafios a serem duelados com a condição humana.

Antecipar-se é, pois, palavra de ordem. Antecipação à disfunção, ao dano, ao sofrimento, à incapacidade, relacionados à biologia e à psicologia e que estão além do controle consciente direto da pessoa.

Os avanços incorporados à Medicina, quer os ligados ao aperfeiçoamento do clássico, quer os revolucionários ditados pela computação cognitiva, pela inteligência artificial, por chaves mestra do genoma, pela Medicina de precisão e que tais, revestem-se da expectativa histórica por maior qualidade e eficiência da prevenção em Medicina.

O almejado resultado prático chama-se presença majoritária de (boa) qualidade de vida. Não exatamente em ausência de alguma doença constante no CID, mas, caso ela exista – uma crônica, por exemplo-, pela possibilidade de conviver com conforto com a mesma pela evitação de desdobramentos, fato altamente vantajoso para o prognóstico.

Prevenção, antecipação, preservação, precisão interligam-se no arquipélago da libertação, tendo como um elo forte a prudência, uma virtude, portanto disposição para um fim superior, e que permite formar uma corrente com o zelo da Ética, a beneficência, a não maleficência e a autonomia da Bioética principialista e o rigor com o saber, abertura para o desconhecido e imprevisível e tolerância à opinião divergente da transdisciplinaridade.

É octeto que permite trabalhar com a complexidade do corpo humano, desfazendo suas inúmeras dobras pelo entendimento que reverter e prevenir podem conviver em mesmo planejamento profissional pela possibilidade integrativa de comporem distintos níveis de realidade clínica.

O general chinês Sun Tzu (544ac-496ac) nos ensinou “… na guerra prepara-se para a paz, na paz, preparar-se para a guerra...”. O florentino Niccoló Machavelli (1469-1527) nos legou que “… precisa ser raposa para conhecer os laços e leão para enfrentar os lobos...”. A sabedoria popular conceituou que “… é melhor prevenir do que remediar…”.

Novas tecnologias dão ao médico e aos profissionais da saúde meios para implementar os sábios pensamentos sobre prevenção do dano, da disfunção, do sofrimento e da incapacidade. Hora de reverberar o valor da Medicina preventiva entre profissionais, leigos, sistema de saúde e instituição de saúde.

A Bioética da Beira do leito interessa-se pela prática da prevenção, inclusive pela necessidade do desenvolvimento da conduta mais adequada na fronteira ainda cheia de incógnitas entre o rotulado como um estável normal e o cogitável como um dinâmico anormal. Uma nova abordagem do conceito de doença como um aglomerado de apreciações já vem sendo proposta em substituição ao conceito clássico que falha em enquadrar certos contraexemplos. Por exemplo, situs inversus é uma anormalidade estrutural, olhos de cores diferentes é uma anormalidade estatística, menstruação é uma causa de desconforto físico,  contracepção por fármaco necessita do médico. As justificativas que são habitualmente usadas para definir doença, têm, pois, exceções que prejudicam que sejam consideradas como alicerces do conceito de doença.

Certamente, o olhar preventivo com maior profundidade do mergulho para a parte imersa do iceberg, traz a necessidade imperiosa da prática da prudência atrelada ao binômio rigor do conhecimento vigente- abertura para o ainda desconhecido. Vale dizer, a calibragem da flexibilização acerca da eficiência objetiva da intervenção médica, implicações sobre alocação de recursos e admissibilidade subjetiva no contexto da condição humana.

Cria-se a oportunidade de superpor o benefício da Medicina de dar (qualidade de) vida aos anos com dar anos à vida, que já compõe ideias de morte à morte, jovialidade biológica e envelhecimento cronológico, idealizações modernas da mitológica Ambrosia.

Novas conexões da Medicina com a Saúde não deixam de manter a beira do leito contemporânea enquadrada na observação do guilhotinado francês Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794), cuja privilegiada cabeça imortalizou-se pelo pensamento que “… na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma…”. A Bioética da Beira do leito é fórum adequado para a análise crítica sobre a exatidão em seu amplo sentido semântico das transformações  (antecipações) que não criam nem perdem saúde.

 

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES