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500- Consentimento/autonomia/tolerância/paternalismo fraco

Está longe de ser situação profissional agradável, mas, o que fazer? O não consentimento do paciente deve ser tolerado pelo médico. A menos que haja iminente risco de morte, quando, inclusive, nem mesmo há necessidade da obtenção do consentimento de acordo com normas deontológicas brasileiras. Portanto, a tolerância do médico a contraposição de opinião do paciente numa tomada de decisão que lhe interessa está ligada ao direito à autonomia pelo paciente, salvo quando o valor máximo da preservação da vida no curtíssimo prazo está em jogo (situação de emergência).

A questão da inobservância por parte do paciente que procura o médico subentendendo-se que deseja receber aconselhamentos e resoluções amplia-se quando se insere na discussão a visão de prognóstico. Pode-se conjecturar que o ato do não consentimento do paciente livre esclarecido a ser tolerado pelo médico pode comprometer o prognóstico mediato da enfermidade em curso.

É o caso da recusa em ser submetido a um procedimento que provoca continuado agravamento clínico e desemboca num iminente risco de morte, nova circunstância evolutiva que costuma significar menor chance de bom resultado, maior dispêndio de recursos financeiros e sobrecarga ao sistema de saúde. Antítese do conceito de prevenção.

A tolerância, nos ensinam os filósofos, não deve ser absoluta, ou seja, uma tolerância universal não seria viável, pois atos que, por exemplo, ameaçam a efetiva liberdade coletiva são intoleráveis. Assim, vale a indagação: O que poderia ameaçar a liberdade da aplicação da Medicina ética neste contexto de (não)consentimento/respeito à autonomia/prática da tolerância?

Entendo que a difusão de conhecimento desprovido da verdade da sustentação científica, quer como distorção aplicativa do estado da arte por má-fé, quer como certas opiniões emitidas por pessoas próximas ao paciente (circunstância mais delicada), enquadra-se como comprometedora da liberdade do usufruto da Medicina validada e atualizada pela sociedade, e, portanto, deve ser admitida como intolerável. Um dos aspectos associa-se ao conceito de Pós-verdade, em que a veracidade fica para trás pela preponderância de crenças, ideologias  e influências emocionais sobre a objetividade dos fatos.  Não faltam informações de saúde destituídas de crédito na internet cujos tentáculos agarram expectativas de cunho fantasioso do paciente.

Uma eventual atmosfera de contraposição à recomendação do médico é favorecida pela acentuação da vulnerabilidade do paciente proporcionada pela enfermidade que o incapacita para o alcance rápido da real eticidade do profissionalismo da Medicina. Por isso, a prática da tolerância do médico a um não consentimento do paciente precisa incluir um estágio dialógico de reforço dos esclarecimentos. Em outras palavras, é desejável que um não consentimento inicial do paciente seja considerado provisório até sua eventual reversão ou consolidação definitiva.

Estamos falando, então, da prática do paternalismo fraco que nada proíbe, nada coage, nada pune e nada viola do direito do paciente para manifestar desejos, preferências, objetivos e valores, e, de modo acolhedor, empenha-se por sua mais adequada compreensão das implicações dos efeitos dos métodos. Capaz de sentir o momento aflitivo do paciente, oferecer-lhe o que lhe falta de conhecimento com solidariedade,  consciência da liberdade, espontâneo emissor de simpatia e digno receptor de confiança do paciente.

Desta maneira, a tolerância do médico a um não consentimento do paciente deve ser observada como um processo superposto ao do próprio consentimento e, inclusive, contribuinte para ajustes que possam ser considerados éticos na condução do caso.

Mas, o paciente dificilmente está sem a companhia de pessoas afins. Sabe-se que familiar, amigo, colega, outro paciente, consultor religiosos e as várias faces do defectível Dr. Google emitem “segunda opinião” com graus maiores ou menores de influências aleatórias  sobre o paciente, passíveis de estimular um não consentimento. Desta maneira, o processo de tolerância agregado ao do consentimento precisa comportar o dever profissional de insistir sobre a realidade das informações. Vale dizer, o médico assistente deve persistir nos esclarecimentos, não deve ficar em segundo plano na influência sobre o consentimento, evidentemente, não manifestando a sua autoridade de modo proibitivo ou coercitivo

Assim, o legítimo contexto consentimento/autonomia/tolerância/liberdade da beira do leito admite o paternalismo fraco de braços dados com a autonomia, nada excludentes, pois esta – que é do paciente- nunca é pura pelo caráter gregário do ser humano e aquela – que é do médico- é exigência da missão profissional. Não há dúvida que a verdade tecnocientífica em manejo é a mesma para ambos, médico e paciente, contudo, a vontade ao seu redor é variável, e, sob forte influência dos esclarecimentos em dupla mão de direção. O paternalismo fraco representa disponibilidade de propósito e de tempo profissionais para transitar nesta via de vai-e-vem. É respeito ao Direito dos médicos VIII do Código de Ética Médica vigente: É direito do médico decidir, em qualquer circunstância, levando em consideração sua experiência e capacidade profissional, o tempo a ser dedicado ao paciente, evitando que o acúmulo de encargos ou de consultas venha a prejudicá-lo.

Enfim, deve ficar claro que o abuso histórico que justamente motivou a concepção do princípio da autonomia na Bioética não deve condenar o bom uso dos meios de compreensão num cenário de assimetria de conhecimentos. Aproveitamento que se ampara na beira do leito na expertise do médico, na liberdade de expressão do paciente e no processo de tolerância que se superpõe ao do consentimento pari passu com as orientações no decurso do atendimento ético.

Tolerância na beira do leito ao lado de reiteração de argumentação insere-se no melhor que pode ser feito profissional e eticamente e afasta inadmissíveis sentidos de passividade, indiferença, desrespeito ou desprezo.

 

 

 

 

 

 

 

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