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496- Distintos níveis de realidade na conexão médico-paciente

A prática da Medicina é apaixonante. Sucessivos encontros.  Cada um com sua qual exigência de intensidade de conhecimentos. Conexões interpessoais dependentes de combinações de atenção, percepção, juízo, memória, pensamento, linguagem e imaginação para uma tomada de decisão consciente e deliberada.

Talvez nostálgico, destaco o valor que meus professores da Faculdade de Medicina transmitiam sobre este conjunto inspirador, criativo e agregador, que admitiam essencial para dar vitalidade adaptativa aos recortes do saber, adquiridos prioritariamente nos chamados livros de texto. Lembro-me que a leitura feita ainda sem maior contato com o paciente determinava pensamentos de pressuposição, compunha um atendimento fictício -muito baseado na convivência com mãe e pai médicos-, procurava me situar além do texto, especulava como deveria ser, mobilizava-me para o domínio da prática, vale dizer praticava – e  vibrava- extrapolação, uma forma de imaginação construtiva.

Pelas peculiaridades da língua portuguesa, e para que não houvesse menosprezo cientificista, os mestres reforçavam naquela atualidade da Medicina da década de 60 do século passado, o sentido que pretendiam válido para imaginação, a fim que se evitasse a compreensão como contemplação ou revelação. Definiam como a faculdade de representar elementos de composição do pensamento treinado, matéria-prima para a sistematização do raciocínio clínico: “… Nunca se esqueçam da imaginação como ferramenta imprescindível para controlar a integração dos distintos conhecimentos na concepção diagnóstica, não a considerem antônimo de racionalidade, mas um seu instrumento de prudência… Nada supera a meditação sobre sinais clínicos recolhidos pelos órgãos dos sentidos em feedback com denominados critérios de certeza sustentados pela verdade do estudo anatomopatológico…”.   

O norte-americano Austin Flint (1812-1886) pioneiro e difusor da Propedêutica física em Cardiologia (“… Exame físico é condição sine qua non para o diagnóstico…”) facilita o direcionamento para previsibilidades resolutivas baseadas em evidências acumuladas : “… Acumule um certo número de casos, analise-os detalhadamente sobre sintomas, frequência, sequência e duração, óbito/cura… Use esta bagagem frente a novo caso, construa a história clínica com eventos… Por processo de exclusão, reflita  sobre possibilidades de uma doença frente a outras, realize o diagnóstico diferencial…”. 

A representação mental possibilitada pelo aprendizado da propedêutica clínica sempre me cativou. Desde cedo, tive uma relação de muito afeto suas potencialidades, interpretei-a como um diálogo determinante de um fio condutor para o caso, guia indispensável para poder dizer menos um hesitante o que deve ser e mais um afirmativo o que é.  Assim, passava a falar a mesma língua do corpo doente. Um sopro piante na área mitral de início súbito fazia imaginar através do peito do paciente a existência de cordas tendíneas da valva mitral rompidas, certos ruídos pulmonares faziam imaginar que a função cardíaca estava prejudicada, petéquias conjuntivais faziam imaginar uma “longínqua” vegetação formada numa válvula do paciente febril. Insubstituíveis! Pelo menos na época pré-explosão da imagem tecnológica.

Atualmente, muito é visibilizado e não visualizado, graças ao espetacular desenvolvimento de métodos de imagem, “macroscopia não invasiva”. Imaginação e imagem adquiriram novas inter relações vantajosas para a qualidade diagnóstica clínica. A Medicina contemporânea dá ênfase a cada vez mais nítidas imagens captadas de modo transcutâneo e que determinam representações  esclarecedoras de comprometimentos de órgãos. Risco de desvalorização das combinações de atenção, percepção, juízo, memória, pensamento, linguagem e imaginação pelo exame físico do paciente.

Tudo isso tem virado naturalidade, forja encontros médico-paciente centrados em “uma imagem vale mais do que mil sinais e sintomas”, eles vão acontecendo a reboque da inovação que,  considerada vantajosa incorpora-se rapidamente à rotina e, prontamente passa a ter implicações éticas – exige-se como plataforma das “boas práticas”. Ademais, a Medicina baseada em evidências determina o pré-requisito da fundamentação mais objetiva “São Tomé” – ver a conclusão de pesquisa clínica para crer na validade.

Nesta circunstâncias contemporâneas, considerações de subjetividades – aquelas que os colegas antigos associavam à Medicina como arte (Medicina é a ciência da incerteza e a arte da probabilidade- William Bart Osler- 1849-1919)”- estão sendo eliminadas da beira do leito, uma repulsa  à “Achologia”, esta denominação criada para detonar mesmo o que não se enquadra. Então, o que se verifica é que a integração entre o exterior representado pelo científico e o interior calcado no emocional e no espiritual dispersou-se. Em decorrência, a experiência profissional de fato colecionada pelo médico dublê de profissional e ser humano, bem como as plurais realidades individualizadas de cada paciente, tão enaltecidas no princípio da Autonomia – evitação da pessoa coisificada-, o diálogo entre ciência e tradição, tendem a ficar em segundo plano perante a força  da Medicina globalizada em diretrizes clínicas.

A maturidade profissional alerta, entretanto, que pensamentos radicais como os da racionalidade cientificista são fontes de armadilhas na beira do leito. Neste contexto, encontrei na transdisciplinaridade uma forma de tentar amenizar desequilíbrios entre objetividades e subjetividades, especialmente pela promoção do exercício profissional onde pontos de vista mais científicos e mais humanos podem conviver e alternarem-se na hierarquia do momento. Recorde-se que não há evidências científicas para satisfazer as necessidades de saúde do paciente, que seria anti-ético dizer ao paciente que voltasse à consulta no dia em que uma evidência científica sobre o seu problema passasse a existir. Representações mentais profissionais autóctones têm suas utilidades e a participação de emoções e de espiritualidade incluem-se no resgate da humanização na beira do leito.

Um préstimo da transdisciplinaridade é reconhecer a complexidade dos entornos das enfermidades. Por isso, qualquer etiquetagem de simplicidade em determinado caso clínico tende a ser  um reducionismo funcional (é do dia-a-dia do médico cuidadoso que quando ele tacha um caso como simples, fica algum tempo conjecturando se não deixou passar alguma coisa importante).

Outro préstimo da transdisciplinaridade é a observação elegante que se deve considerar a existência de vários níveis de realidade que existem simultaneamente no decorrer da conexão médico-paciente, sem necessidade de uma definição rígida de hierarquia, qualquer eventual ordenação deve obedecer à ocasião, ou seja, eles podem ser complementares. Assim, existe a realidade de um mesmo conhecimento emitido profissionalmente de um lado e recebido de modo leigo do outro; a realidade da responsabilidade ética da seleção do conhecimento como recomendação de qualidade frente a uma suposição de confiança pelo paciente; a realidade da utilidade e eficácia de métodos presumidas por evidências versus os efeitos realizados; a realidade do médico não poder assegurar resultados e o interesse do paciente apenas pelo bom resultado; a realidade da intenção  profissional de aplicar algum método beneficente e a recusa do paciente em se submeter sem que a atitude signifique desconfiança da qualificação do profissional; a realidade da ideia profissional de adversidade como caminho inevitável para um benefício maior e o paciente recebendo como dano inaceitável.

Mais um préstimo da transdisciplinaridade é admitir a lógica do terceiro incluído, quando, habitualmente, o entendimento é que não pode haver ao mesmo tempo A e não A formando um terceiro elemento (terceiro excluído). É neste ponto em que é possível a convivência simultânea de A e não A, que a transdisciplinaridade valoriza a velha imaginação de que os clínicos sempre se valeram para projetar suas condutas em tempos de Medicina não globalizada, necessitada de ser alimentada pela memória qualificada da experiência pessoal. De fato, a imaginação possibilita em nível psíquico desafiar a lei da impenetrabilidade, projetar um futuro (imediato) e  fazer comparações com um passado recente conscientizado pela memória. Assim como alguém pode se imaginar como cairia no corpo uma roupa enquanto ainda permanece despido, não há contradição, permite-se a coexistência de pares contraditórios, quando uma pele com lesão evidente (A) examinada ao olhar experiente do médico é pode ele imaginada ou em seu agravamento ou isenta da mesma (não A), uma abstração antecipatória energizada pela coleção mental e que sustenta a indicação ética de uma terapêutica reversora, até mesmo um niilismo por convicção num desaparecimento espontâneo. Da mesma forma em termos de identidade imunitária, um órgão transplantado é um não A que convive num corpo A, uma inclusão que possibilita a coexistência de A (sem chance de sobrevivência natural) e não A (incapaz de sobreviver naturalmente) em nova composição vital que foge à lógica clássica graças ao continuum dos avanços da ciência e da tecnologia.

A beira do leito já foi tradicionalmente um território do médico e, atualmente, o paciente adquiriu direitos de uma convivência ativa. Novas realidades, novas complexidades, novos manejos da cognição.

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