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485- Bioética e imbróglios na beira do leito e na beira dos tribunais

Recentemente, ouvi que a Bioética clínica lida com muitas incoerências. A afirmação foi sustentada pela menção do médico que no Serviço onde trabalha uma consultoria em Bioética relacionou mais aspectos prós do que contras para atender a um caso de manifestação da vontade de alta a pedido pelo paciente por motivo alegado de trabalho e, ao mesmo tempo, enumerou mais aspectos contras do que prós para atender a um caso de recusa de transfusão de sangue pelo paciente por motivo de religiosidade.

Ambas as situações, usualmente, tangenciam o mau prognóstico clínico caso pela inobservância de conduta beneficente, inclusive morte no curto prazo. Os argumentos da contraposição do paciente às orientações médicas são o cárcere privado – retenção da “vítima” em local fechado, incluindo abuso de autoridade caso em Serviço público–  para a saída do hospital e a liberdade religiosa – é inviolável a liberdade de consciência e de crença– , para o não consentimento à correção da grave anemia, relevantes por serem dois componentes da Constituição brasileira no que concerne ao direito à saúde.

Conjecturo que momentos interpretáveis como desuniformidades de atitude no proceder na beira do leito acontecem quando a objetividade que acompanha o profissionalismo torna-se salpicada por extratos de subjetividades ligadas ao caráter, personalidade e temperamento. Numa linguagem da Bioética, um embate de prioridade entre o princípio da beneficência e o princípio da autonomia. Envolve, igualmente, reflexões sobre liberdade de consciência e liberdade de pensamento. Abrange a  participação da Bioética visando a uma deliberação.

Um ponto essencial na interface com a Bioética é a característica que forja o profissional da saúde ético, ou seja, de  ofício não dispensar avaliações de futuro com base em raciocínios lógicos sob  premissas que valoriza lidando com a situação, em pensamentos abstratos que expandem percepções e na capacidade de planejamentos alternativos e igualmente resolutivos. Antídotos contra truculências em clima de imediatismos. A expressão popular é isso ou isso e estamos conversados não deve habitar a beira do leito eticamente saudável.

Como se sabe, a prudência, este fundamento ético pétreo da Medicina, ligadíssimo à segurança biológica do paciente, pela clareza que todo caso admite incertezas, riscos, acasos, guarnece o sentido da fidelidade ao melhor futuro possível.  A não aplicação de benefícios com potencial reversor do mau prognóstico – manutenção da internação hospitalar pelo  período conveniente e  melhora da circulação sanguínea, nos exemplos acima citados- configura-se na contramão da visão do futuro do paciente do artigo 32 do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente. A variabilidade de atitude apontada – uma tendência à concordância médica com a objeção do paciente e uma tendência à discordância com o paciente- conjuga-se, especialmente, ao termo a seu alcance. De fato, verificam-se juízos de distintas distâncias entre veracidades da ciência (despovoada) e realidades da beira do leito (habitada) em função do (não) consentimento pelo paciente.

Considerando a Bioética principialista, uma alta a pedido _ autonomia em jogo- efetiva-se, habitualmente, associada a algum tratamento – já  praticado e/ou uma receita médica  a ser fornecida- e, ademais, tem o potencial do regresso. Por outro lado, uma não transfusão de sangue perante anemia intensa (beneficência em jogo) pode ser altamente comprometedora da sobrevida no curtíssimo prazo pela falta específica, o que faz com que a intenção de respeitar o credo do paciente necessite do acompanhamento de eventual alternativa terapêutica, entendido que já houve os devidos esclarecimentos sobre os efeitos deletérios da não reposição de sangue.

Assim, na questão acima sobre (in)coerências, vale lembrar que uma alta a pedido tem alguma chance de não provocar má evolução clínica, inclusive pela volta do paciente ao hospital. Já em relação à prescrição de transfusão de sangue que, em casos ligados a recusas por religiosidade só é considerada, comumente, quando representa iminente influência entre sobrevida e morte, a privação costuma contribuir fortemente para a irreversibilidade do grave quadro clínico. O iminente risco de morte admite, pois, ajustes de apreciação.

Não é improvável que o médico e/ou um representante da Bioética faça um exercício de (não) identificação com o paciente. Ele não se mostra neutro em relação à circunstância e, em decorrência, mesmo cuidando para ser imparcial, tenha um grau de abertura e de tolerância distintos para a atitude que ele mesmo poderia estar adotando caso fosse o paciente  ou que nunca faria.

Afinal, qual é a missão maior do médico? Assegurar de maneira heteronômica a continuidade da vida do paciente desde que a Medicina tenha os recursos é a tradição da profissão. Orientar a respeito das condutas que possam atender às necessidades de saúde do paciente com o máximo de prudência, esclarecer sobre prós e contras das opções, ajustar-se, dentro das possibilidades permitidas pela própria consciência a desejos, preferências, objetivos e valores do paciente e praticar com o máximo de zelo o eventualmente combinado, sustenta  a ordem ética atual na relação médico-paciente com disposição autonômica.

Ao mesmo tempo que a tecnociência transforma-se, a sociedade muda e a diversidade cultural amplia-se, um conjunto de influência na relação médico-paciente contemporânea. Assegura-se ao paciente, por meio do binômio autonomia-consentimento, o direito de tomar decisões concordantes ou discordantes em relação à orientação médica . Sim é sim. Não é não. Esta dupla exigente da capacidade cognitiva inexiste eticamente, entretanto, na emergência, por força do disposto no Código de Ética Médica vigente (“… salvo em caso de iminente risco de morte…”).

Neste contexto de evolução do significado de estar médico-estar paciente, o conceito de futilidade terapêutica sobressai-se ao de obstinação terapêutica, diretivas antecipadas de vontade restringem procedimentos denominados de suporte à vida e o suicídio assistido ganha adeptos e está legalizado em alguns países.

Há óbvias implicações no ensino da Medicina. Enquanto  o currículo das disciplinas de graduação em Medicina é direcionado para porque, como, onde e quando fazer, a Bioética numa horizontalidade no decorrer da formação acadêmica lança alertas sobre porque, como, onde e quando não fazer.

Por tradição, o conhecimento tecnocientífico sustentado em evidências, verdades estáveis ou renováveis,  e que se movimenta  como validações para aplicação terapêutica ao paciente, obedece, entre nós, ao disposto no Código de Ética Médica vigente numa fixidez heteronômica do caput É vedado ao médico. Já a apreciação de natureza Bioética preocupa-se em fazer ajustes do foco desta movimentação que não é nada exata – e muito por isto- entendendo que ocorre sobre o terreno movediço da condição humana. Justifica-se porque, em decorrência, formas de recepção pelo paciente da informação prestada pelo médico são infinitas  na pessoa em geral e oscilantes num mesmo  indivíduo.

A figura é clara: dispondo da verdade da Medicina validada à sua época e calcada no estado da arte, o médico, no simbolismo do seu número de CRM, uma autorização da sociedade para dela cuidar, se impõe como poder do profissionalismo em Medicina. Todavia, este poder não obriga  à obediência estrita pelo paciente, pois o valor que cada cidadão dá à recomendação que recebe é uma ordem distinta da autoridade, o valor está ligado ao desejo. Desta distinção surgem embates que dividem juízos em Ética e Direito. A Bioética, por sua vez, procura exercer um papel conciliador in loco, mas o vigor das consonâncias nunca deixa de ter suas fragilidades perante um tribunal ético ou legal.

O mesmo médico, ao se opor à alta a pedido, ao não aceitar a recusa a uma transfusão de sangue, ao não obedecer ao disposto em testamento vital, está convencido de atuar com prudência, mas não por isso, está imune a juízos de desrespeito à pessoa. O mesmo médico que aceita naturalmente a alta a pedido, admite não prescrever transfusão de sangue e segue ipsis literis o disposto no testamento vital, não está imune a juízos de conduta imprudente e negligente. Em qualquer eventualidade adversa, ele estará sujeito a eventual decisão condenatória em um tribunal ético ou legal.

O mundo real da beira do leito não é para amadores. Suas realidades não são explicadas ao pretendente a estudante de Medicina quando faz o vestibular, ficam nebulosas durante a graduação e só serão  bem conhecidas quando o médico estiver em plena roda viva do exercício profissional, então, possuindo maior ou menor capacitação emocional para lidar com as “surpreendentes” atitudes anticientíficas de pacientes e resumidas na manifestação de indignação ouvida de um jovem médico: “… Porque é que, então, procurou o médico?…”.

Neste imbróglio, é missão da Bioética procurar caminhos que não somente evitem a persistência de um clima belicoso na beira do leito ou na beira dos tribunais, como também cumpram o ensinamento de Sun Tzu no seu livro a Arte da Guerra, assim adaptado: Na guerra, dispor-se para a potência em transformar em paz; na paz, considerar o potencial de transformação em guerra.   Alô Bioética!

 

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