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467- Bioética e o oximoro “paternalismo como costume próprio”

Gosto muito de pensar no substantivo sem caminhar para a adjetivação. Por exemplo, vivenciei fracassos – próprios e alheios- mas não me rotulei e a eles  como pessoa fracassada. Pois, a resultante negativa em si comumente serve para transformar ideias, reorientar pensamentos, provocar ressignificações a modos de se enxergar mesmas situações.

Por isso, o médico não deve sentir-se um profissional fracassado perante um não consentimento do paciente, particularmente numa situação que envolve radicalismos de prognóstico. É mais proveitoso utilizar como estímulo para nova rodada de esclarecimentos, ou seja, o exercício do paternalismo fraco que não compromete o direito à autonomia do paciente, pois é apenas uma segunda oportunidade.

A beira do leito contemporânea não pode prescindir da tradição da vivência comprometida com a relação médico-paciente. Todavia, a diversidade da condição humana traz dificuldades para a harmonização conceitual entre não consentimento (autonômico) e insistência com boa fé pelo consentimento            (heteronômica, paternalismo fraco).

Esta possibilidade do pisar em ovos em relação ao direito do paciente participar ativamente do tomada de decisão sobre a própria saúde, no âmbito do binômio autonomia-consentimento, com certa frequência, nem é cogitado porque é primariamente dispensado pelo paciente (“… Doutor, sigo o que o senhor recomendar…”). Até pode soar como sucesso profissional, aderência estrita, mas há de se cogitar que pode ser ilusório porque não ocorre pela qualidade do esclarecimento e, daí, não estimula exercícios de aperfeiçoamento.

Uma das causas que considero no topo do ranking é o aspecto da condição humana que responde pelo nome de angústia  da escolha. Alguém já disse que o ser humano está condenado a ter liberdade da escolha, ser responsável pela mesma temendo diante de si mesmo que ela possa materializar-se numa má decisão, culpando-se. Assim, absolve-se seguindo obediente a palavra do médico qual um ato de fé.

Desdobramento trágico é não se perdoar futuramente quando a fé (já ver o bom resultado realizado antecipadamente) falha num mau resultado e, como se sabe, frustrações de expectativas são caldos de cultura para agressividades.

Percebe-se que somente o medo do enfrentamento de um sofrimento suposto como maior do que o atual – classicamente, preferir um fármaco a uma intervenção invasiva- supera a angústia da escolha. Tais realidades da beira do leito costumam ser aos poucos conscientizadas pela maturidade profissional.

A Bioética interessa-se pelo tema, e, diria que não pode se omitir mesmo, pois observamos uma burocratização do consentimento pelo paciente (“… O senhor (a) decidiu?”… “Minha resposta é não desejo operar, doutor…”… ” Obrigado… O próximo!…”).

A angústia da escolha temperada pelo desconhecimento técnico faz o paciente praticamente exigir o oximoro do “paternalismo como costume próprio”. O paciente concorda com base numa visão de autoridade do médico, confiança  bastante para dar o seu consentimento sem nenhum filtro autonômico mais efetivo por pensamentos possíveis de ajustes  por seus desejos, preferências, objetivos e valores.

Numa outra vertente do polimorfismo que caracteriza o binômio autonomia-consentimento, a do médico comprometido tanto com a beneficência quanto com a autonomia, e, talvez, energizado por um sentimento de fracasso profissional, ele pode manifestar a sua angústia pela escolha do paciente (reforço, angústia da escolha é do paciente e angústia pela escolha é do médico) que constitui uma saudável contraposição à tendência de burocratização do (não)consentimento pelo paciente. É circunstância onde as adjetivações de esclarecido e de livre são essenciais na consideração do binômio autonomia-consentimento.

O médico que não aceita um não inicial, nem precisa ficar conjecturando eventuais causas, ele, simplesmente, deve se direcionar para a reiteração, o que significa perseverar nos esclarecimentos, estar propenso a novos diálogos com o paciente ou terceiros com influência no mesmo, de modo que não fique dúvidas sobre as informações, nem haja uma ultrapassagem pelo limite da liberdade do paciente no sentido da coerção.

É arte que se inspira no encontro do profissional sensível com o ser humano perturbado pela acentuação da vulnerabilidade pela doença, que como qualquer encontro promove expansões e limitações, muitas delas exigentes de uma coragem criativa que, no caso do médico, precisa respeitar os balizamentos da prudência e do zelo. É esforço mental, pois cabe conciliar  3 artigos do Código de Ética Médica vigente, abaixo reproduzidos, todos com o caput É vedado ao médico:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

Na beira do leito, o velho paternalismo não morreu e a jovem autonomia passa pela adolescência.

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