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466- Exílios

Deixa a vida me levar (Vida leva eu!) é letra conhecida de um samba de três compositores não muito conhecidos e um intérprete bem conhecido dos brasileiros. Penso que a mensagem é condizente com a ideia de estarmos constantemente nos tornando estrangeiros em novos mundos, fadados, pois, a sucessivos exílios. Algo como desde que saímos do útero, nos sujeitarmos a exílios continuados. Ninhos esvaziando-se e sendo preenchidos.

Em cada um deles somos levados a encontros com desafios de múltiplas variedades que estimulam as potencialidades e demandam escolhas adaptativas – novos hábitos, por exemplo- assumindo responsabilidades internas e externas.

Desejos, esperanças, oportunidades, ideais, objetivos, enfim imaginações que vão descortinando novos horizontes em novas locações, matérias-primas das individualidades, não devem ser censurados pelo temor da migração, mas vistos como comunicações internas que devem ser filtradas para não serem inconsequentes e, então, adotadas como bem-vindas, assimiladas em suas particularidades e consumidas num misto equilibrado de racionalidade e emoção, em cenários de pertencimento. A liberdade que é indissociável da auto-imagem. O imperativo de não poder voltar para o lar todo protetor -não ter como retornar à matriz- e ter que arcar com a responsabilidade de correr atrás da própria identidade.

Há exílios transitórios e duradouros, voluntários e obrigados. Eles comungam a criação de novos significados, muitas vezes, tão somente ajustes. As férias, este substantivo pluralício, passadas numa viagem, são exemplo de exílio voluntário transitório. Muitos trabalhadores compulsivos (workaholics) se vêem num exílio enfadonho aos finais de semana.

É de se notar que passar da condição de leigo para profissional é um exílio voluntário e duradouro onde se chega levando a bagagem da educação e a intenção do diálogo com a tradição do ofício. Um leigo naturalizando-se na profissão, recebendo uma nova cédula de identidade com número do CRM, da OAB, do CREA e de tantos mais.

Algum bioamigo pode estranhar  esta conotação de exílio para o profissionalismo. Lembro, então, que o futuro previsível da expulsão – pela idade – em ambientes universitários sustenta a concepção. Jovem, eu não sabia se iria desejar uma aposentadoria aliviadora ou iria ter que me conformar com a chamada expulsória. No intervalo de décadas, cuidei da minha identidade profissional enfeixada num número de CRM – e exposta num carimbo para legitimidade-, procurei estar o mais enraizado possível no espaço de trabalho já que não nasci médico, manter-me produtivo, criativo, habituado, renovado, coerente com solilóquios com a bagagem moral que trouxera e, de certa forma, permanecendo um nativo da nascença – leia-se leigo- que, inclusive contribui para melhor compreensão da relação médico-paciente. Sim, um cidadão exilado na Medicina que, evidentemente, tem a vida pessoal, a família como referência fundamental, terra-mãe que dá continuidade à cidadania leiga e que faz com que o significado de duradouro do exílio profissional tenha um componente ioiô.

O meu exílio profissional deu-se na Cardiologia, mais especificamente na Unidade de Valvopatia, na nação do InCor. Consegui ser um naturalizado em harmonia com tantos outros, comunicando-me, comprometendo-me, aprendendo pelo diálogo entre convicções e incertezas. Todavia, alertei-me que se tratava de um ambiente onde inexiste vida profissional eterna e, que um dia, ela acabaria numa expressão de deportação do exílio, não importando um bom status cognitivo.

A fila iria andar impreterivelmente, ligada ao conceito de gerações, mesmo quando saber e sabedoria estivessem transbordando pelo acúmulo da experiência. Quando de fato aconteceu, em meio à sensação da perda de um verdadeiro amor, eu fui direcionado para um novo exílio. Exilei-me na Bioética. Registre-se que o comportamento foi mais de uma interrupção e remanejamento do que de aposentadoria. O aviso antecipado noticiou-me a necessidade de preservar o espírito nômade arquitetando novos desejos, oportunidades e objetivos. Recomendo.

Com efeito, uma vez alertado para a realidade deste dia, muito antes comecei a me envolver com a linguagem, os costumes e as políticas da Bioética. Este tipo de preparação para o que já fou chamado de “precoconceito etário” mostrou-se eficiente, pois, não somente facilitou a transição, como também contribuiu, neste novo exílio, para ser “poliglota”, falar as linguagens do médico (que conhece paciente), do leigo (que nunca eliminei) que  tem a visão do “outro lado do balcão” e da Bioética, numa inter-relação de utilidade para o envolvimento com novos direitos e deveres. Há uma propensão adaptativa do tipo compensatória que acompanha a sucessão de exílios sob a forma de transferência de competências com motivação redobrada.

Por outro lado, é lícito conjecturar que o médico é parte essencial da recepção e adaptação ao exílio a que o paciente se submete quando se interna no “território” do hospital. O doente porta um “visto de entrada” representado pela indicação à internação, porém que não lhe esclarece mais aprofundadamente sobre o ritual a ser submetido, a vivência é que permitirá interpretações e fará assimilações.

Afastado da própria rotina, o paciente internado convive com um alhures de hábitos aos quais não está acostumado, com uma linguagem que lhe é estranha, com situações físicas peculiares. Ele é um estrangeiro no leito, está de passagem num exílio provisório. Contudo, ele não deve perder a sua identidade e, por isso, fato relevante neste contexto, recentemente, o paciente “estrangeiro exilado” ganhou uma cidadania universal pautada no principio da autonomia. Muito embora tenha que se ajustar à cultura do local, ele tem o direito dialogal, a preservação da voz ativa sobre decisões, a liberdade para participações a sua maneira neste exílio.

Evidentemente, quem mais conhece a cultura local é o médico – juntamente com demais profissionais da saúde-, o que traz o dever profissional do esclarecimento ao estranho, emissão e recepção de informações em duas vias de direção para satisfazer os melhores interesses da estadia. Desta forma, o momento do consentimento do paciente configura-se como uma consciência do valor desta modalidade de exílio com equilíbrio objetivo (compreendo o método) e subjetivo (aceito o método). O paciente adapta-se ao exílio  e, porque não, o exílio ajusta-se ao paciente.        

Toquei na condição humana de exilado exterior, mas há também o exílio interior. Ele tem várias formas, uma que preocupa a comunidade médica, atualmente, é viver no território do bournout e com  índice preocupante de suicídio. O passar dos anos e seus decorrentes “desgastes de material” costumam criar um tipo de exílio interno para que a vida -pessoal e profissional – não seja interrompida, caracterizado pela vivência no mundo ioiô dos comprimidos. Sobrevive-se, justamente, por este exílio do corpo no mundo da Farmácia. É experiência que contribui para  evitar aquelas manifestações de insatisfações comuns do exílio profissional (“não aguento mais esta rotina que me massacra”). De fato, assim como não devemos nos sentir vítimas da doença que nos exila num mundo de dependência de drogas lícitas, não faz sentido nos vermos vítimas indefesas – do sistema de saúde, por exemplo- no exílio profissional, habitualmente voluntário e duradouro, tão somente pelos percalços, inevitáveis em sua maioria.

Considerar-se em exílios, vivenciá-los com autenticidade, é, antes de tudo, lançar mão de uma coragem criativa proporcional ao grau de mudanças adaptativas necessárias como alicerce de realizações, abertura a contraposições, apesar do seu paradoxo, a necessidade de se comprometer e, ao mesmo tempo, ter muitas dúvidas.

Como exilados contumazes, nos guiamos pela conscientização que seremos, invariavelmente, algum tipo de estrangeiro em algum tipo de ambiente, que nos dispomos ao enfrentamento, à conquista, à energização de expectativas quando almejamos novos caminhos e significados.

Comecei  com uma música popular e termino com um clássico da poesia Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá... (Canção do Exílio, autoria de Antonio Gonçalves Dias-1823-1864, que faleceu afogado num naufrágio em que todos se salvaram, ele estava doente, acamado,”exilado em seu quarto” e foi esquecido pela tripulação e passageiros). O exílio nos leva…

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