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465- Bioética e auto-(não)consentimento pelo médico

Imagino que foi quando se percebeu que um grupo de médicos começou a manifestar deficiências vocacionais, expressar um profissionalismo com certo rebaixamento da racionalidade moral, enfim, afastar-se do virtuosismo tradicional,  que surgiu a ideia da criação de um Código de Ética Médica que cuidasse da atuação profissional com um nível aceitável de sensibilidade ética.

É fato que o valor da virtude na pessoa do médico que precisa classificar dados, fatos e métodos como um bem ou um mal em cada circunstância clínica está interligado à força específica que a Medicina exerce sobre determinado ser humano. Mesmo método é bom ou mau.

Esta sinergia entre virtude e composição benefício/malefício foi se revelando insuficiente frente ao progresso da Medicina pela explosão de interpretações do bem exigível e do mal aceitável. Passamos a contar, então, com edições periódicas de Códigos de Ética Médica prescritivos de valores e de regras  de atuação em prol da aquisição e da revelação da disposição de focar no bem pela aplicação de métodos das Ciências da Saúde, utilizando, nos últimos anos, uma apresentação que normatiza pela evitação da má prática que se pretende eliminar. Uma justificativa para a redação de cunho negativo (é vedado) é que é mais fácil compreender um ato transgressor com consequências visíveis- foi negligente em aplicar tal benefício em tal caso- do que um conceito em seu lado positivo- o significado de zelo em geral com suas peculiaridades ditadas por vieses culturais, sociais e econômicos. Favorece o didático, o fiscalizador e o judicante das atribuições de um CRM.

Assim, no contexto de combinações de permissões e proibições idealmente por determinantes virtuosos (autonômicos) e no mundo real da heteronomia por código de conduta, dois seres humanos, o médico (amplie-se para profissionais da saúde) e o paciente (amplie-se para familiares e certos circunstantes) estabelecem um encontro. Dele, materializa-se um ato criativo que determina seleções e ajustes de métodos eticamente validados e moralmente sustentados. O fio condutor faz-se pelo rigor tecnocientífico com disposição para  flexibilizações por mente aberta ao desconhecido e ao imprevisível e por  personalidade tolerante a opiniões divergentes.

Pela mixagem entre rigor, abertura e tolerância, cada atendimento requer a conscientização sobre: Que paciente ele é? Que médico devo ser? Que médico ele é? Que paciente devo ser?  A beira do leito convive com expressões distintas destas duplas de interrogações, pois construídas por interações  da condição humana e do acervo da Medicina. São quatro indagações capitais no desenvolvimento da relação médico-paciente.

Por mais que o médico recém-formado estruture sua progressão formativa privilegiando o conhecimento tecnocientífico e a habilidade na aplicação, por mais que a juventude médica seja composta por diálogos com a Medicina e silêncios com a condição humana, mais cedo ou mais tarde, ele se deparará com alertas para urgentemente elevar o grau de intimidade com a essência do início do Princípio fundamental II do Código de Ética Médica vigente: O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano. Pois constatará na prática que  saúde não é tão somente ausência de doença.

A moralidade da conexão médico-paciente contemporânea, vale dizer, o comportamento real em sua relação com valores e regras codificados,  inexiste sem elos de tomadas de decisão encadeados pela força ética do binômio autonomia-consentimento (tanto a do médico, quanto a do paciente). Ela já foi constituída de modo predominante por matéria prima proveniente do médico – que tudo decidia sem nenhuma voz ativa do paciente – e, após a segunda metade do século XX, passou a contar com a lapidação moral da participação efetiva dos desejos, preferências, objetivos e valores do paciente (Nuremberg, Helsinki, Belmont).

Em termos práticos, o paciente procura o serviço médico com suas queixas e manifestações, recebe a atenção devida, vale dizer, submete-se a exames selecionados pelo saber do médico num sistema de puxar o fio da meada e, após a fase diagnóstica, na fronteira da terapêutica (muitas vezes na própria fase diagnóstica), o predomínio do ritual guiado pela Medicina passa pelo domínio da condição humana, onde o paciente exerce a prerrogativa de aceitar ou rejeitar  -consentimento, não consentimento- toda ou parte da plataforma cuidadosamente construída. Pela abertura e tolerância,  ajustes são possíveis quando, então, o médico dá cumprimento a sua autonomia-consentimento em consonância com os ditames de sua consciência.

É de se ressaltar, neste contexto, a variante do binômio autonomia-consentimento  na vertente do médico que denomino de auto-(não)consentimento. Ela está intimamente ligada à visão de segurança biológica do paciente, quando o médico passa a beneficência de um método conceitualmente aplicável pelo filtro do quantum de maleficência deve ser presumida no caso específico, e, então, pode até vir a eliminar a aplicação mesmo se o paciente, porventura, a exige e dá o seu consentimento em nome da autonomia.

O auto-(não)consentimento é uma forma de paternalismo a que o médico se exige e não abre mão em nome da prudência, um fundamento ético pétreo. Como se depreende, o auto-(não)consentimento do médico filtra muitas possibilidades que não necessariamente são esclarecidas ao paciente porque ele não entende como opções de escolha. De vez em quando, elas são questionadas em tribunais éticos ou legais a posteriori, especialmente em situações de má evolução do caso. Alô Bioética!

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