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460- De cabeça para baixo

Recebi o e.mail abaixo. Creio que ele motiva aqueles que lidam com Bioética a expor suas opiniões sobre o valor da Bioética clínica. Assim, proponho que você bioamigo me encaminhe  seu posicionamento sobre as alegações contrárias à Bioética. Como você contra argumenta?

Dr. Max, perdoe-me a minha inconveniência, mas entendo que o seu blog é um espaço para reflexões não importa a posição que se tome. Transpareço-me em argumentos, mas não sobre a minha pessoa pois, de propósito, entendi ser mais adequado enviar minhas ideias por um endereço de e.mail que não permite me identificar, prefiro ficar anônimo porque sou um médico que trabalha em hospital muito frequentado por colegas que sei que leem o seu blog – os bioamigos- e não desejo me envolver pessoalmente com discussões de corredor que são desgastantes e não levam a lugar nenhum. Sei que o senhor é pessoa bem intencionada, que corre atrás de verdades e, talvez por isso mesmo tem uma forte preocupação didática, contudo, o senhor apresenta a Bioética como um instrumento inquestionável de honestidade ética se é que posso traduzir desta forma, e, até o momento, não consegui entender a Bioética que o senhor apresenta como Bioética da Beira do leito, uma utilização prática ao seu ver, qual é o seu valor real para que pacientes possam ser melhor atendidos e tenham seus problemas resolvidos com mais atenção e de modo mais resolutivo, especialmente, quando precisamos conviver com um sistema de saúde longe de ser aquele dos sonhos de qualquer cidadão, quando temos que trabalhar de uma forma que não permite uma escolha mais compatível com a Medicina que nossas consciências focalizam. A bem da verdade, para que é mesmo que serve a Bioética? Apesar de todos os problemas,  a imensa maioria dos atendimentos é realizada com qualidade pelo menos razoável para nossas realidades nacionais, de alguma forma cuidamos da necessidade que faz o paciente nos procurar, o SUS está aí com a maioria, repito, fazendo o que pode, a Saúde complementar funciona, erros profissionais são humanos e têm em qualquer parte do mundo, pacientes não costumam ser modelos de obediência rígida ao que recomendamos, os recursos financeiros, humanos e de infra-estrutura não são infinitos aqui e em qualquer lugar, doenças são insistentes, aproveitam-se da fragilidade dos órgãos em face a ecossistemas mais ou menos insalubres, o envelhecimento é irreversível  e cada vez mais perigoso e custoso, os hábitos humanos, estes são uma lástima, a perversidade de fumo, sedentarismo e alimentos é notória e, em meio a tudo isto a Medicina progride, progride e provoca acréscimos de adversidades. A imperfeição domina independente da nossa vontade, um passo pra frente na ciência gera passos para trás na repercussão humana, não é conservadorismo da minha parte, aprecio as inovações, mas cada um de nós, médicos que somos, temos nossas consciências e sabemos avaliar estas coisas, então porque é que preciso de um poder vigilante sobre a dinâmica que procuro empreender na beira do leito, para usar esta expressão que o senhor adotou, um poder que se diz para ajudar a deliberar que já nasceu propenso a criar mais contraposições e, não tenho dúvida, uma antipatia de colega para colega por desejar apresentar e se pautar por regras não discutidas com a comunidade médica, uma imposição de cima para baixo, perante conflitos que sempre fizeram parte dos atendimentos e que precisam ser resolvidos pelas partes diretamente envolvidas, pois, como o senhor bem sabe, nem sempre é possível atender aos desejos de cada paciente com as limitações éticas a que estamos sujeitos e, por que não, das limitações da Medicina em si, atender ao que ele imagina ser mais agradável, ou menos desagradável, concordar com seus valores e objetivos – gravei esta parte de um artigo seu: o paciente deve ter respeitado desejos, preferências, valores e objetivos no processo de  consentimento-, que podem, inclusive, ferir nossas consciências. A Bioética vai me dizer o que é correto? Ela pretende organizar uma deliberação sem discutir com uma ou outra parte envolvida e não com todas as pessoas envolvidas? Muitas vezes fazendo numa reunião fria, sem a presença de quem mais sente os problemas, que são o paciente e aqueles que o cercam e o médico que está cuidando e que tem detalhes que podem ser difíceis de transmitir e de ser absorvidos por terceiros? Não, Dr. Max, ao contrário do que o senhor prega como se Bioética fosse uma religião, um imperativo, uma coordenação lubrificada por direitos e deveres que seriam quase que naturais, os médicos que cuidam de pacientes com ética não precisam de alguém nos dizendo o que fazer pelo ser humano, que é melhor assim, devemos enfrentar por nós mesmos, aliás, a Bioética não se contradiz quando desta maneira se propõe a um paternalismo? Não consigo reconhecer em profissionais que muitas vezes não lidam diretamente com pacientes, ou seja, ignoram os meandros da relação médico-paciente, suas necessárias flexibilidades, competência suficiente para me criticar com ares de superioridade intelectual e moral. Posso afirmar que tenho bom berço, sou razoavelmente educado, penso pelo ângulo otimista, sou bem formado numa Faculdade tradicional, fiz pós-graduação em serviço de referência nacional, conheço o meu papel na sociedade, frequento reciclagens, leio sobre atualizações, não sou hipócrita, meu jaleco não é uma pele diferente da minha própria, e, principalmente, CUIDO (com letra maiúscula de ênfase) de pacientes, muitos deles, diversificados e fragilizados, todos os dias, e, nesta sala de aula aprendo com eles, desculpo-me com eles, sorrio com eles, choro com eles, considero-me  dedicado profissionalmente. Porque é, então, que preciso da tutela da Bioética, com seus argumentos genéricos que nem sempre valem para a ocasião e, vinculados por pessoas que não comprovam credenciais para a função, como soube, vários não se manifestam em reuniões de Bioética, não têm voz ativa e treinada. Dr. Max, desculpe-me, mas há um artificialismo envolvido no que se chama de Bioética, que chega às raias da arrogância, intolerância também, e, especialmente  me motiva a este desabafo, falta de compreensão do que é ser médico nas circunstâncias atuais de tantos recursos possíveis e tantas impossibilidades. Agradeço o tempo que o senhor possa ter dispensado a ler minhas palavras e, caso seja do seu desejo, informo que estarei atento ao seu blog sobre alguma manifestação a respeito, pois repito, o e.mail só foi usado para o envio e não permitirá retornos.  Abs. 

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