PUBLICAÇÕES DESDE 2014

458- Bioética, Narciso e a ninfa Eco

Uma carreira profissional como a do médico contemporâneo implica numa vivência histórica do progresso da Medicina. Em pouco tempo de graduação, ele está lidando com métodos que não existiam na sua formação universitária. A necessidade de atualização de competência – conhecimento, habilidade e atitude- significa a incorporação crítica da inovação ao conteúdo clássico do profissionalismo aplicável. Há os pioneiros e há os seguidores.

Tive a oportunidade de ver nascer – e se consolidar- muitos métodos em Cardiologia, pois desde o final da década de 60 do século passado, farmacologia, técnica cirúrgica e imagem tiveram um desenvolvimento sem precedentes na história da Medicina.

Inovações costumam provocar tensões com o clássico, surgem como vantagens e trazem o potencial de passarem rapidamente de complemento para essência.  Devida ou indevidamente. Apreciar a historicidade das mesmas é sempre instrutivo, pois, por exemplo, auxilia a entender tendências de comportamento profissional.

Exemplifico com a ecocardiografia, método de imagem que se incorporou timidamente à Cardiologia na década de 70 do século XX e rapidamente adquiriu status de exame imprescindível graças a constantes aperfeiçoamentos tecnológicos e aprimoramentos na qualidade das informações.

Iniciei-me cardiologista com sustentação em especialização em dois centros de excelência sem a existência do recurso da ecocardiografia. Na circunstância específica da valvopatia, contava fundamentalmente com meus órgãos dos sentidos diretamente no paciente para obter as informações diagnósticas essenciais. Adquirira uma boa capacidade de ausculta cardíaca, praticava-a diuturnamente, portanto, aperfeiçoava-a  em serviço, cotejando-a com outros sinais do exame físico, confrontando com dados da anamnese e fazendo uma análise crítica com a eletrocardiografia e a radiologia então disponível. Pontos de referência mais fidedignos eram representados pelos achados cirúrgicos e necroscópicos. O estetoscópio era para mim um prolongamento ativo do aparelho auditivo, tinha certa preocupação com fatores externos de potencial de redução da audição.

A partir de observações das habilidades de colegas e do ensino da Propedêutica clínica a estudantes de Medicina e a Residentes de Medicina, conscientizei-me que percentual expressivo não evidenciava pendores para o exercício qualificado da ausculta cardíaca. Embora não conscientizado na ocasião, representava um terreno propício para a adoção de algum método que pudesse preencher lacunas de habilidade propedêutica – Alô Ecocardiografia!

De repente, na década de 70, deparei-me com a ecocardiografia chegando ao Hospital das Clínica da FMUSP contribuindo para a complementação da propedêutica física em casos de doenças valvares.  A técnica por ultra-som, inclusive, motivou-me a fazer pesquisas que resultaram em tese apresentada para obtenção do título de Livre-Docência (Avaliação da dinâmica da valva de dura-mater em posição aórtica no simulador cardíaco. Estudo por técnica de ultra-som).

Eticamente, firmei compromisso profissional que a ecocardiografia era exame complementar, que não poderia dispensar o exame clínico. Contudo, o passar dos anos revelou que esta atitude perdia rapidamente adeptos. Logo verifiquei que havia uma verdadeira terceirização de cardiologistas jovens para a ecocardiografia a respeito do diagnóstico de valvopatia.

Atrevo-me a interpretar que a falta de pendor para o desenvolvimento de uma ausculta cardíaca qualificada sustentou esta terceirização, talvez acrescida da redução do tempo disponível dedicado ao exame do paciente.  Uma consequência é a queda do número de professores de propedêutica física  com competência “à antiga”, em função de um efeito domínio, ou seja, quando não se aprende não há como ensinar. Em suma, a ecocardiografia, especialmente por sua ampliação informativa atual adquiriu um status de analogia ao do exame físico.

Concordo que um bom exame ecocardiográfico atual exercido por um colega com boa formação e experiência apresenta notável relação benefício/malefício, contribuindo efetivamente para a excelência do diagnóstico e da terapêutica em Cardiologia. Contudo, o laudo em si, não deve ser utilizado de modo absoluto como que apartado dos demais dados emitidos pelo paciente.

É aí que entra a contribuição da Bioética da Beira do leito, no sentido de conter excessos de entusiasmo com o valor propedêutico da imagem e seus complementos proporcionados pelo aparelho de ecocardiografia. De um modo descontraído, diria que o ecocardiografista deve se preocupar  não somente com a imagem  gerada desde o paciente, como também com a própria imagem profissional, no sentido de não extrapolar os limites do método e, assim, invadir indevidamente fronteiras da interdisciplinaridade. É preservação ética e moral da área de atuação.

Neste contexto de imagem, narcisismo e racionalidade, vale lembrar o alerta mitológico sobre um excesso de concentração da realidade clínica sobre um determinado método. Coincidentemente, é Eco o nome da ninfa que morreu de desgosto após ter o amor por Narciso por ele repelido, fato que fez com que Nemesis o punisse fazendo-o apaixonar-se pela própria imagem refletida na água. A lição grega é que situações de “auto-amor” são  autodestrutivas.

A Bioética da Beira do leito entende que o narcisismo de alguma forma compensa as deficiências instintivas do homem – em relação ao aparelhamento instintivo dos animais- e, assim, reconhece a validade do chamado  narcisismo benigno, aquele que é um auto-reconhecimento do seu trabalho, de suas efetivas realizações, que não apresenta uma hiperinflação do ego, que seja autolimitadora da real competência. Em outras palavras, que a energia assim gerada aproxime-se de algo de fato produtivo e afaste-se de qualquer sensação de uma posse inebriante.

Em tempo, vale para quem exagera na tecla do exame físico, haja vista a coleção de casos cada vez mais comum de achados complementares exigentes de providências em pacientes assintomáticos e com boa qualidade de vida.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES