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199- Médico, logo insatisfeito?

PROCURA Saudosistas procuram o tipo de medicina que no século XX era a exceção heroica que sustentava a tradição em declínio do profissionalismo independente, nas palavras do sociólogo Paul Starr (nascido em 1949) .

Não acharão, busca infrutífera! Está sepultado, talvez tenha sido cremado. Mas não eliminado da História da Medicina, onde coerências e contradições podem ser analisadas. Ignorá-lo é como crer que o último artigo publicado agora sim trouxe a certeza do bom resultado. Supervalorizá-lo exalta o diploma como instrumento de posição social. Aceitar as mudanças é reconhecer que médico é indispensável, inclusive, para fazer certos danos salvadores de uma vida, para deixar de fazer condutas por receber um não consentimento do paciente, para ajudar paciente a morrer.

Com a perda do profissionalismo independente e concomitante conexão com as realidades objetivas que passaram a predominar, o médico deixou escapar poder de liderança, viu uma parte do seu saber ser facilmente conhecido pelo leigo- leia-se desobrigado a cursar a Faculdade-, teve a sua experiência pessoal com casos sem possibilidade de exclusões ser questionada por conclusões de pesquisas sistematizadas com inclusões seletivas. O médico tornou-se vulnerável a insensíveis interpretações do seu profissionalismo. Estar médico veio a ter outra visão, virou simplesmente ter um (ou mais) emprego(s).

Será que exagero? Estarei sendo injusto, em não conformidade com  os tempos  de agora, ignorando subgrupos distintos e a equidade a outras profissões que não persistiram exceção prolongada? Mesmo assim, se me excedo é porque entendo ser indispensável tocar fundo na atualidade profissional do médico, o que significa carregar nas tintas fortes – com patriótico predomínio verde e amarelo- para que provoquem reações sinceras e para que estimulem discussões sobre as virtudes da Medicina contemporânea e o poder específico do médico atual com sua carga histórica, suas qualidades morais e seus deveres socioculturais. Ser sensível às impressões facilita desenrolar o condutor fio do novelo no renovado labirinto da beira do leito.

Evolução dos tempos. Claro, as sociedades são água passando sob a ponte. Menos louvores, mais direitos, mais finanças. Mais  exigência de comunicação, menos tempo disponível. Mais notoriedade na densidade de ciência médica, menos reconhecimento da atividade de arte pelo médico.

O sinistro do anúncio da perda da referida condição de exceção é que ela compartilha uma redução do grau de satisfação de ser médico. Em consequência, a beira do leito testemunha a inquietante tendência ao desequilíbrio em cada médico entre o extrínseco da demanda para atenção profissional e o intrínseco da vontade hipocrática.

Evidentemente, estar ou não satisfeito é aspecto subjetivo que demanda mais profundidade de interpretação, mas são cada vez mais frequentes as estatísticas a este respeito em várias partes do mundo, inclusive sobre o desencorajamento a familiares de se tornarem médicos- que convenhamos, não vinga muito.

No Brasil não é diferente e, curiosamente, cresce o número de Escolas Médicas, cujas vagas são ardorosamente disputadas não importa o número de salários mínimos de mensalidades. Em 72 meses, daria a esmo um dispêndio de cerca de 300-500 deles ao final do Curso. É muito dinheiro quando se sabe que cerca de 80% da população brasileira receberia 72-216 salários mínimos no mesmo período. Não se esquecendo que somente o diploma não é suficiente, a Pós-Graduação lato sensu é essencial. Vocação, idealismo, forte investimento no saber para desaguar em insatisfação? Algo parece estar equivocado. Se o Brasil precisa de maior número de médicos, prover para que eles se sintam profissionais satisfeitos deve ser uma bandeira. Bem representativa nas mãos de um poder que assim pense e realize.

Aquele reconhecimento sincero expresso pelo paciente que era felicidade para ambos e sempre contribuiu para a auto-estima do médico minguou. Muitos viam  com um quê de divinização, mas representava humanização, preenchimento de incompletudes de calor humano deixadas pela fria ciência aplicada. Sim, a humanização da relação médico-paciente tem duas mãos de direção, mesmo que o número de faixas de rolamento seja desigual.

Observa-se que a obrigação de fazer pelo médico não exige o reconhecimento na mesma proporção em que não fazer a obrigação inspira a reclamação pelo reparo por parte do paciente. O Código de Ética Médica tem a maioria de seus artigos iniciada por É vedado ao médico.  Há, pois, um pressuposto de falhas  na linguagem violenta é vedado deixar de, o que ensejaria um subtítulo ao Código  do tipo Como não ser anti-ético. Mas o aprendizado científico é focado no que é lícito fazer. Os livros não priorizam o que seria não ciência.  Não cumprir o definido positivamente é que responsabiliza. Ser prudente, mais do que não ser imprudente é o alvo a ser atingido.

Responsabilidades que sabem que danos sem volta acontecem deveriam provocar um clima de “boa” afetividade quando tudo dá certo e dentro do permitido. Que alívio! Houve boa evolução cabe para o paciente, mas para o médico seria Procedi corretamente! Houve boa evolução, pois, caso destacasse um alívio, representaria um profissional pouco crente nos referenciais de benefício e de segurança validados e cientificamente empregados e com comportamento guiado pela evitação do antiético, portanto, com mais ênfase na defensiva pessoal do que condução técnico-científica recomendada e consentida.

Soa paradoxal. Há mais recursos para aplicar, mais diagnósticos de certeza e mais tratamentos úteis e eficazes. Não é o que o médico pretende dispor? Ele que está sempre à procura de mais qualidade em grande parte do seu tempo acordado, inclusive substituindo sono por plantões? Pesquisando, difundindo conhecimento, prescrevendo na beira do leito.

Há mais pacientes participando ativamente das tomadas de decisão sobre utilidade clínica, há mais entendimento sobre as impropriedades da futilidade terapêutica. Comportamentos que contribuem para uma Medicina humanizada e assim prover créditos de satisfação ao médico pela aplicação solidária.

Mas, como salientou Starr, a relação médico-paciente não acontece de modo adstrito a estes dois seres humanos em torno de necessidades, saberes e habilidades. O sigilo, o consentimento, a anamnese, a receita, a operação ganharam extensões aos espaços íntimo e pessoal.  Mais métodos, mais hospitalismo, mais gestão, mais normatizações, mais sistema de saúde ampliam a distância entre ato médico e satisfação. Inevitável! Desejável! Calendários de vacinação, aprovação governamental de fármacos, esterilização de material cirúrgico, disponibilidade de máquinas requerem políticas que em meio a confrontos de escolha definem o que a ciência é em como a ciência acontece. Mas elas não podem apequenar o raciocínio clínico, a habilidade para uma sutura, a dignidade do profissional, não devem reduzir o escore de insatisfação.

Ajustes doídos foram necessários para as gerações que se diplomaram quando a exceção referida por Paul Starr ainda estava vigente. Já os recém-formados ingressam no mercado de trabalho com novas orientações do ser médico. Para eles, os colegas mais velhos deixaram de ser os exemplos que eram há décadas e, ademais, não se interessam por um conhecimento histórico que lhes seria utilíssimo para compreender as influências de época no ser médico, enfim, que ajudaria na questão de lidar com a satisfação. Se por um lado, entende-se que ter uma diretriz clínica para  sustentar uma decisão traz eticidade, por outro- grande lição- ser ético não significa estar profissionalmente satisfeito. Consciência tranquila é uma coisa, perseguir ideais é outra.

Será que está faltando humildade, ou seja o médico não consegue se livrar das ilusões que ainda alimentam o adolescente eu desejo ser médico? Será que está faltando simplicidade, ou seja, o médico não aceita existir de acordo como as coisas se tornaram?  Enquanto trabalhamos esta dúvida, não podemos esquecer que o médico é uma autoridade na Saúde – ele atua, ele decide, ele se faz obedecer- e que a sociedade não deseja que como tal ele acolha de modo submisso tudo que venha de fora para o interior do vínculo médico-paciente, pois questões de saúde não combinam com grande condescendência, o que traz o desafio de apresentar-se na frente do paciente intelectualmente justo ante complexidades multifatoriais. A Bioética da Beira do leito reconhece o quanto é instigante para o médico avaliar a grandeza do que pode e deve batalhar pelo paciente por recursos indispensáveis, razoavelmente desejáveis ou excepcionais, como expressão do seu comprometimento ético. 

Definitivamente, o médico ético é contra artifícios, contra segundas intenções, contra censuras, contra indignos conflitos de interesse e se sente com liberdade tolhida perante certas imposições travestidas de normas. E não ter o controle da decisão e da aplicação, íntegro desejando ser fiel ao valor da verdade, digno, sabendo o que é necessário, não para sua glória, mas para que possa sustentar um profissionalismo decente, compromete a satisfação. Em outras palavras, quanto mais o médico vivenciar obstáculos por desejar uma Medicina no mínimo aceitável no mundo real, menos satisfação sentirá como profissional. Há limites, Hipócrates  (460ac-370ac) percebeu, Moises Maimonides (1135-1204) reforçou. Liberdade e  paz de espírito são indissociáveis. Amar a Medicina é uma coisa, ver-se privado de a exercer conforme incorporou por acreditar no que aprendeu é outra, lembrando que decepção de expectativas de vontades não utópicas é causa de tristeza, logo origem de vazios, portanto fator de insatisfação.   

Reescrevendo a questão: O que é que faz um médico habitualmente prudente, zeloso e capacitado que beneficia tantos pacientes com suposto prazer de oferecer soluções não ser retribuído com a própria sensação de satisfação que se esperaria do cumprimento de um ato médico para o qual dedica-se obstinadamente? Um médico que quando dá uma alta ticando a opção paciente melhorado está longe de entendê-la ato burocrático destituído de afetividade. Que impactos desviantes poderiam estar ocorrendo neste profissionalismo não independente para gerar tantas tensões?      

Não faltam  quem sabe é: Má remuneração? Ausência de plano de carreira? Pouco tempo para se dedicar a cada paciente? Glamour progressivamente minguante no seguir diretrizes? Baixo apoio à auto-estima por submissão a protocolos de atendimento de urgência dos quais não participou da elaboração? Insuficiência de capacitação para satisfazer as exigências de comunicação do paciente?  Menos poder apesar de mais saber?  Carência de interações corporativistas? Percepção que outros interesses profissionais aconteceram, até dentro da própria Medicina?

Cada bioamigo hierarquizará ao seu modo de ver as possibilidades de desilusão sobre qualidade, respeito, hierarquia burocrática, opinião pública, Medicina cara com pequeno percentual dos valores indo para o bolso de quem de fato é imprescindível para fazer a ciência beneficiar o ser humano.

Por fim, uma observação. Deixar-se afetar por um determinado grau de insatisfação verdadeira  provoca mais consistência para lutar por um fim superior do que vivenciar um nível de satisfação que esteja associado às palavras de William Bart Osler (1849-1919) retratando a sua época: “… A rotina diária de um médico ocupado tende a desenvolver egoismo intenso para o qual não há antídoto… Os infortúnios são esquecidos e os erros enterrados… Dez anos de trabalho provocam uma atitude mental dogmática, intolerante e egocêntrica…”.

No caminho de saída deste labirinto, vale pegar carona com Ana Karenina de Lev Nikolayevich Tolstoi (1828-1910): Todos os profissionais médicos satisfeitos são iguais, os insatisfeitos são cada um a sua maneira. Médicos mentalizam-se agentes de uma boa Medicina e, decepcionados, baixam seus níveis de satisfação profissional. A Bioética da Beira do leito deseja contribuir para o exercício de reflexões etiológicas e de proposições terapêuticas para o encontro de modos de inversão desta indesejada tendência ao anti-prazer profissional que se observa acompanhando o desejado progresso técnico-científico da Medicina.

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