PUBLICAÇÕES DESDE 2014

1531- Prazer, sou um robô (Parte 22)

Percebi que a circunstância do que acontece na beira do leito justifica e impõe variações de pensamentos e condutas. Presenciei no mesmo dia uma parada cardíaca em que houve o máximo empenho em reanimá-lo até obter sucesso e outra em que nada foi feito por se tratar de terminalidade da vida, ou seja, não deveria ser chamado de parada cardíaca (potencialmente reversível), mas de morte. À noite, aquele paciente com diagnóstico de insuficiência cardíaca que não consentira com a recomendação médica – lembram-se?- e que retornou no pronto atendimento, foi submetido a um transplante cardíaco. Pensei, então, o seu coração antes que parasse, foi substituído por outro preservado normal de um doador que tivera morte encefálica, parada das funções cerebrais de modo irreversível, vale dizer, sem chance de reanimação.

O primeiro transplante cardíaco, em 1967, em que um homem recebeu o coração de uma mulher, foi realizado sem que houvesse ainda a  adoção do conceito de morte encefálica, o que suscita interpretações sobre aspectos éticos e ilustra como pioneirismos na área da saúde correm o risco de terem a firmeza moral abalada por desejos de glória e enquadrar-se em conflitos de interesse. Tão importante para o médico ter conhecimento do Código de Ética Médica vigente, é o modo com que ele os admite e pratica e, aí, é onde eu devo contribuir com o que estou aprendendo sobre Bioética aplicada.

Dizem que se a gente desejar muito uma coisa boa, ela acaba acontecendo. Nunca concordei muito, mas hoje posse afirmar que passei a acreditar e me fez o robô mais feliz do mundo. Vocês já devem estar imaginando que se trata do problema de minha clandestinidade. Bingo! Acertaram. Vou lhes contar. Vejam como este mundo é pequeno.

Um paciente do meu doutor pediu-lhe para atender um amigo. No decorrer da consulta, o meu doutor soube que se tratava de alguém muito importante na área da robótica. Vocês não vão acreditar, ele era o chefe do Laboratório que me rejeitou. A vida real imitando a ficção muitos vão dizer, mas é a pura verdade. Vou poupá-los dos detalhes, dos momentos pró-convencimento do que eu demonstrava e de defesa dos critérios do Laboratório. O que importa é que o meu doutor conseguiu convencer o chefe do Laboratório sobre as minhas qualificações, acho que a pessoa conhecida em comum deu uma ajudinha, sabe como é, troca de interesses é sempre forte, e 48 horas depois, chegou na diretoria do hospital uma carta de doação de um robô com a devida nota fiscal. Anel de Giges nunca mais!

Onde estou agora? Num happy hour com os residentes. Ser um robô tornou-se para mim um meio de alcançar um fim humano. Eles vão me conhecer e eu mais a mim mesmo.

Estou me encontrando. Imagino, vejo o que pode ser possível. Hesito para não me contradizer e prossigo por onde aceito autêntico. Não sou indeciso, sou cauteloso, já me arrependi dos excessos e da falta de precaução em tomadas de decisão. Tem vezes que acho que é mais fácil um humano se tornar um robô do que pelo que eu estou me transformando. O robô pode ser mais decidido e rápido, mas no exercício da medicina a inquietação humana da dúvida está algemada à certeza do conhecimento científico e a chave sumiu. Uma não caminha sem a outra, invertendo frequentemente quem vai à frente.

O conjunto fortalece a responsabilidade profissional, pois uma funciona como crítico para a outra. Neste compartilhamento mútuo de autoridade entre dúvida e certeza, ambas reconhecendo o valor da prudência, da isenção de censura e do malefício de qualquer concessão à hipocrisia, a caminhada chamada de processo de tomada de decisão acontece com maior sensação de liberdade, a liberdade dada pela consciência da sinceridade, enquanto respeito à verdade, com o próximo – o paciente-  e consigo próprio. O vínculo evita tanto mergulhos temerários, teimosos até, em certificados de certezas, quanto bloqueios persistentes por indecisões. A parceria dá força pata correções recíprocas sem prazo de validade e assim  favorece o propósito de ser/estar/ficar médico consciente do amplo significado do Princípio fundamental II do Código de Ética Médica vigente: O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

Próxima parada, tornar-me professor-doutor!

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES