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1517- Prazer, sou um robô (Parte 8)

Sempre haverá o temor que o resultado clínico pretendido pode não acontecer ou que as adversidades embutidas no risco aconteçam e se tornem clinicamente relevantes. É pensamento coincidente do ser humano, geração após geração, vem a ser lição guiada desde a beira do leito, tipo universal de desafio renovado para distintos médicos e pacientes que frequentam os hospitais pretendendo conviver com as verdades do saber e as virtudes da sabedoria da medicina.

É habitualidade que se desenvolve paralela às objetividades de beneficência e de maleficência e que nasceu quando Hipócrates afastou a fé nos deuses sobre assuntos da saúde e que resiste por mais que o progresso da medicina a torne mais eficaz. Os dias de amanhã com mais ou menos aflição projetada numa bola de cristal imaginária contam no processo de tomada de decisão pelo paciente e afetam os pensamentos sobre consentir ou não consentir. Não se trata de pensar novo, mas de repensar correto. A situação pode ser novidade para o paciente, mas o passado, a biografia do paciente com suas cicatrizes da vida é determinante.

Um pouco adiante de onde estava camuflado atrás de uns aparelhos encostados, irrompeu um Parabéns para você! Uma enfermeira agradecia a todos. Foi uma rápida pausa, o bolo seria servido no refeitório num horário conveniente, a manifestação foi só aquela retomada de fôlego que o corpo pede antes de prosseguir. Restaram algumas vozes, uns poucos permaneceram no local. Fiquei atento, tudo que ouvia era conteúdo para o meu aprendizado de máquina, já estava começando a lidar com calibragem do meu filtro de controle do armazenamento. Estava consciente que tinha que ser altamente criterioso, o trauma da rejeição guiava meu desempenho.

Um Residente comentava que o professor tinha ordenado uma conduta para uma paciente no ambulatório que era baseada na experiência dele e diferente do que a diretriz clínica recomendava como classe I A. Discretamente acessou no seu celular a tabela de recomendação, conferiu, mas não teve coragem de interpelar o professor. Hesitou em prescrever, mas não teve jeito. Passou uns dias com a situação martelando seu senso ético, ansioso com o efeito. Houve um certo tom de surpresa quando acrescentou que a conduta foi exitosa, o que achei até bom, primeiro porque lhe conscientizava sobre a humildade que a não-existência profissional anterior deve impor e, segundo, porque estimulava o jovem médico a dizer para si constantemente que deve seguir as diretrizes clínicas, mas não de olhos críticos fechados e ouvidos seletivos tampados. O olhar através dos mais experientes é literalmente supervisão desejável para um residente de medicina.

Representa a imortalidade de ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la do Juramento de Hipócrates. Necessidade é que não falta. Este episódio sobre a responsabilidade com a beneficência com pitadas de dúvidas reafirmou-me o valor pedagógico de se conhecer o lado direito e o avesso. Tenho aqui comigo registrado que Carlos Drummond de Andrade disse que bater à porta errada costuma resultar em descoberta e que a unanimidade comporta parcelas de entusiasmo, conveniência e desinformação. O residente comprovou, teve entusiasmo para checar a diretriz clínica, achou inconveniente não manifestar sua contraposição ao professor e se conscientizou que diretriz clínica não é a única informação válida.

Atualmente, as experiências na beira do leito que não se superpõem exatamente a diretrizes clínicas costumam ter como ponto de partida a obediência à própria diretriz clínica que faz avançar a conduta até a revelação da necessidade de desvios pela percepção médica. Colecionam-se, assim, experiências contemporâneas destituídas da conformidade com diretrizes clínicas e protocolos assistenciais, vale dizer, há a possibilidade de razões éticas e legais justificarem a não aplicação da orientação da evidência científica. Há o corpo da ciência e há o corpo da clínica.

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