PUBLICAÇÕES DESDE 2014

1256- COMO SERIA SE… filme da Netflix

Assisti ao filme Como Seria se… na Netflix e foi um passo rápido do bem impressionado para a motivação de aproveitar a ideia no âmbito da  Bioética da beira do leito.

O título lembrou Mario Quintana (1906-1994): Não faças da tua vida um rascunho. Poderás não ter tempo de passá-la a limpo. Escrita e realizada poucas décadas depois da observação do poeta, numa amostra da acelerada criatividade estimulada pelos dispositivos digitais, as cenas do filme mergulham num contexto de metaverso de felicidade/frustrações.

Duas possibilidades de realidade compõem-se na narrativa, cada uma como virtual da outra, alternando ora o que acontece em função da gravidez de Natalie no Texas, ora o que acontece na Califórnia seguindo o planejado durante a faculdade sem os encargos de mãe conformada e dedicada a Rose Corujinha.

Ambos cenários compartilham o ponto de vista amadurecido de Natalie sobre como deveria se relacionar com Gabe, amigo- não namorado- pai assumido de sua filha. Cada espectador pode escolher ao final qual dos “rascunhos” seria mais apropriado para ser o “passado a limpo”.

O enredo motivou-me considerar uma analogia entre a ansiedade demonstrada nos dois minutos de espera  pelo resultado do teste de gravidez num banheiro com gente batendo na porta e a decorrente de se submeter a exames e aguardar a revelação do afastamento ou da  confirmação de uma hipóteses diagnóstica de doença grave, “rascunhando” na mente, no ínterim, manutenção ou metamorfose da vida pessoal, seus planejamentos e desenvolvimentos.

O médico não costuma ter muito tempo para se envolver com estas movimentações imaginativas e realistas da vida do paciente, ele se faz objetivo sobre as necessidades prioritárias da saúde. Como profissional, portador de um número de CRM que simboliza a delegação – e expectativa- da sociedade para cuidar da sua saúde, ele privilegia a prudência para tomadas de decisão e o zelo para as aplicar por meio de  condutas que promovam o máximo possível de bem-estar e de sobrevida em dada situação clínica.

Em outras palavras, o médico precisa esclarecer o diagnóstico diferencial de manifestações e caracterizar se ocorre oportunidade ou não para uma contribuição terapêutica e/ou preventiva da medicina sobre a vida do paciente. As “cenas” reais do desenvolvimento terapêutico podem admitir também “cenas” virtuais preventivas, pois influenciam a evolução natural e evitam manifestações de agravamento.

Nos esclarecimentos  visando ao consentimento do paciente para a conduta terapêutica aplicável, é habitual o médico fazer um “filminho” do como seria se for deixado progredir a história natural da enfermidade. Esta virtualidade sustenta o compartilhamento sobre uma fundamentação de beneficência entre a recomendação médica e o consentimento do paciente, que, ao contrário do filme em questão, se dispõe tão somente à experiência promotora da saúde.

Caso não haja necessidade de interferências terapêuticas, o médico não se propõe a exercer influência sobre os planejamentos e os estilos de vida do paciente, exceto por eventuais recomendações preventivas, por exemplo sobre hábitos de vida e sobre as habitualidades da progressão da idade cronológica. É interessante considerar que cada órgão em mesma pessoa pode ter sua própria idade biológica, por exemplo, como a “gestação aterosclerótica” pode determinar “vidas” distintas e simultâneas ao coração e aos pulmões nascidos em mesmo dia.

Caso haja um diagnóstico de doença que exija a complexidade da aplicação da medicina, certamente, o médico será um agente com deveres que influenciam a vida do paciente daí por diante – muitas vezes numa conexão jamais passível de eliminação- , quer por aplicações de métodos impactantes no prognóstico da história natural e que possam elevar ao máximo a capacidade do paciente em se adaptar a desafios de ordem física, emocional e social, seu grau de independência, quer por recomendações de proibições que evitam frustações de expectativas e/ou agravamentos mórbidos. É comum se falar em comorbidades, o que subentende uma morbidade maior que dá o tom do cenário de vida possível para o paciente, as demais sendo coadjuvantes.

Evidentemente, o médico não costuma tomar providências para uma imaginária situação alternativa de não-doença do paciente de fato doente sob seus cuidados, todavia, ela auxilia no acolhimento, na composição da comunicação compassiva, sensível ao momento do paciente de frustração de  expectativas e intenção de superação para retornar ao planejado antes da doença.

O acelerado progresso da medicina e as frequentes modificações da sociedade têm possibilitado que o que acontece no filme, ou seja, uma apresentação simultânea, em rodízio, entre duas situações em função do resultado pré-teste possível, ocorra de modo real com ajustes de ordem física, emocional e social, ou seja, a convivência entre um bem-estar pela beneficência/não maleficência terapêutica e um não muito distinto do original planejamento e realização.

Sem spoiler, o final do filme traz uma analogia.  De fato, a cura ou o controle da doença tornam eventuais desvios/impedimentos ao adrede esboçado escalas na trajetória, a seguir retomada, numa adaptação que não fica necessariamente menos satisfatória. Como dito por Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): O ser humano somente ganha liberdade e existência quando as renova diariamente.

A concepção de um novo ser humano por Natalie que tudo muda do preconcebido ou a não concepção de novo ser humano por Natalie que nada muda do preconcebido tem como ponto de inflexão único encontro, casual, um fato do momento comemorativo da formatura, em que houve falha do preservativo. Podemos transpor este acontecimento para a mensagem ao gosto da Bioética: Prevenir continua sendo a conduta adequada para a preservação de um status quo, contudo, temos de nos empenhar pela máxima qualidade dos métodos, nos conscientizarmos que há o imprevisível e o desconhecido, o que inclui a valorização da Tecnociência em sua teoria e prática para conhecer melhor como as morbidades acontecem e podem ser mais bem evitadas com o menor prejuízo possível das vontades.

Para terminar, na chamada gravidez não planejada há a possibilidade de uma eliminação espontânea ou do aborto com suas implicações morais e legais – Natalie descartou esta opção-, enquanto que toda doença é indesejada – hipocondrias e síndrome de Munchausen, à  parte- e são poucas as que apresentam evolução natural para cessar.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES